Manuela Campos Monteiro Serrano. |
Mãe, escrevo-te esta carta...
Se soubesses a água que, entretanto, correu sob esta ponte. Se o soubesses, dirias, se tivesses a oportunidade e a paciência para me ouvir, se eu te pudesses contar tudo; se o soubesses provavelmente dirias que eu te fazia lembrar o tio X, ou o tio-avô Y, um bocadinho tu própria se pudesses ter concretizado tudo o que sonhaste se te tivessem deixado seguir a tua vontade em vez de te açaimarem ao piano, ao francês e ao futuro exclusivo de dona de casa. Talvez, aventurosamente falando, eu tivesse ido um pouco mais longe do que irias, eram os tempos...
Sabes que estive na Torre do Silêncio? Duas vezes! Um dia, naquelas tardes em que tricotavas sob o candeeiro de abat-jour semelhante a um chapéu chinês, ou vietnamita, contaste -tinhas lido não sei onde -que na Índia, esse subcontinente misterioso, longínquo e perigoso, havia, em Bombaim, um local onde eram depositados os mortos, para serem comidos pelas aves do céu, nesse caso abutres... Contavas-nos estas historietas numa voz contida, como o assunto merecia, e que coisas se passavam por esse mundo!, tão exóticas e tão longínquas da rotina civilizada dos muros da nossa rua.
"O sítio chama-se Torre do Silêncio... e é proibido a estrangeiros..."
E eu saía disparado para o quintal, olhando de soslaio as folhas das hidranjas e as sombras das sardinheiras. Será que poderia haver tigres escondidos por ali? E alguma ave do céu me poderia picar se eu adormecesse no quintal e ela me confundisse com um morto de Bombaim? E imaginava o local de que falavas pela bruma imprecisa e autossuficiente da imaginação, uma torre babeliana, sinistra, quase perdida, cercada de selva, muito alta, em torno da qual imperava o silêncio absoluto, um silêncio solene, trágico, tão vivo que nos selaria os lábios só de nos aproximarmos; os próprios pássaros que bicavam os mortos perdiam o pio, por isso eram condenados a ser abutres, uma raça, supunha eu, a quem seria interdito o canto.
Olha, e pelos motivos que te contaria, fui parar a Bombaim, que agora já não se chama assim, mas, por gosto de quem lá vive, mudou o nome para Mumbai, depois de se ter chamado Bombay quando os ingleses mandavam. E por parêntesis e orações subordinadas abertas nos motivos que me levaram a Mumbai, dei comigo, num fim de manhã brilhante e quente, despejado por um táxi nas Torres do Silêncio! Ah, aquilo não é nada como nos fazias supor, como eu ficara a imaginar. De comum com a tua verdade só o facto de continuar vedada a estrangeiros, mesmo o ser-se indiano não é causa suficiente para se lá entrar. Só uma seita de indianos que migraram da Pérsia há séculos pode frequentar o local e entregar aí os seus mortos para que terminem a existência a coberto da contaminação da terra, da água e do fogo. O que vem com a brisa levá-los-á...
De resto, aquilo é no meio da cidade -imagina, é como se ficasse na baixa do Porto ou, sendo mais preciso, para os lados da Boavista -pelo meio de prédios altos encontras como se fosse um jardim da Arca d'Água, só que valendo cinco ou seis dele e muito mais arborizado, murado, um muro tomado pela vegetação e já se confundindo com esta. As torres (são duas) estão lá no meio e não se veem de lado algum, é escusado, é propositado. Depois, à entrada do jardim, há uma cancela e um guarda sentado à sombra que te pergunta se és parsi, se vais a alguma cerimónia parsi. É difícil dizer que sim, ser convincente de panamá, t-shirt e calças de ganga, talvez um deles -num dia generoso -te permita dar uma voltinha rápida pelo bosquete, mas só até ao largo ao cimo de uma vereda verde, onde acaba o asfalto e as ambulâncias antiquadas estacionam para, discretamente, entregar os mortos a quem, cumpridas as formalidades, os há-de colocar num dos sectores triangulares que subdividem o círculo que coroa o terraço a céu aberto das torres. No século XXI são já poucos os defuntos da etnia parsique procuram as Torres do Silêncio, assim como vão rareando os abutres que volteiam em hélice no céu azul, tornado enevoado pela poluição de uma cidade com mais de vinte milhões de pessoas. Não é que os abutres se tenham modernizado e -como as gaivotas da Arca d´Água que deixaram o mar e se contentam com o lixo dos contentores -tenham enjoado a carne humana... É mais porque que quem morre é geralmente velho e aos velhos achaca-os o reumático, as dores na juntas; os comprimidos e a pomada de Voltaren ajudam a minorar o padecimento... Mas os abutres, coitados, por brutos e eternos que pareçam, são demasiado sensíveis ao medicamento que foram ingerindo sem o ter encomendado, sem o saber, e isso foi-lhes ceifando a vida individual, custando a sobrevivência da espécie. Os próprios mortos se vingaram de quem lhes executava o destino, vê tu só como tudo isto é comezinho e diverso do que imaginavas naquelas tardes de porta aberta para o jardim de trás. O mistério, que nos parecia espesso como um óleo, tornou-se, com a passagem do tempo, ténue como uma aguarela; há dias em que quase me apetece rir da simplicidade evidente das coisas, como os ossos limpos do excesso.
E agora, olha, não me falta assim tanto em anos para ter os que tinhas quando morreste e, por vontade expressa, te transformaste em roseira. A água que, entretanto, passou! Depois de ti fui ao Ceilão, voltei ao Nepal, à Índia umas sete ou oito vezes, ainda mais vezes à África, negra e exótica, de que também me contavas assombros e de quem, em almanaques sortidos, via as gentes em intrigantes fotografias a preto e branco com legendas que diziam: "Gente da nossa terra: indígena dos Bijagós". Como podia aquele homem com o nariz atravessado por uma pena de galinha, ou aquela mulher de mamas ao léu e cheia de tatuagens que supunha marcas de varíola, serem gente da nossa terra? Se, por absurdo, topasse num deles na Arca d'Água desataria a fugir ou punha-me na fila para lhe espreitar as mamas de mais perto! Ao andar por lá vi que não eram nada parecidos com os indígenas dos almanaques e, se convivias com eles de perto, vias que alguns eram mesmo parecidos connosco, talvez a legenda tivesse um erro topográfico e quisesse antes dizer "Gente da nossa Terra".
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Foto Beleza, Porto; (2) e (3) Pedro Serrano, Mumbai 2016; (4) Pedro Serrano, ilha de Elefanta, Índia, 2018.