31 outubro 2011

RI MELHOR QUEM RI IMPUNE


Tem alguém de quem se quer vingar, alguém que o ameaça ou, simplesmente, alguém que o irrita? Então, porque não considera a hipótese de se ver livre dele(a) de uma forma definitiva?
Uma conhecida personagem pública portuguesa, homem muito dado à religião e figura maior na política portuguesa dos anos 80, demonstrou,  brilhante e recentemente, como proceder com sucesso em situações deste género. Antes de aconselhar a receita, exponho aqui, em frugal dúzia de linhas, o contexto do que se passou com ele e com o seu problema particular.
Domingos Duarte Lima é advogado e, por via das suas relações profissionais conseguiu que uma velha dama portuguesa residente no Brasil, viúva informal de um senhor riquíssimo, depositasse numa conta Suíça de que o homem é titular, a irrisória quantia de cinco milhões de euros. Mas as relações entre ambos complicaram-se, a senhora exigiu a devolução do dinheiro e, esse foi o seu mal, ameaçou o causídico de que tornaria os factos, bem como os meandros do negócio, públicos.
A polícia brasileira que, tudo leva a crer, levou a cabo uma investigação consistente e pormenorizada, concluiu que o Dr. Lima viajou até ao Brasil, a convenceu a dar uma volta pelas redondezas e lhe enfiou três tiros nocturnos, deixando-a a boiar numa poça de água e lama. Após a proeza, o nosso herói, homem que conhece as leis portuguesas como as suas mãos, regressou de imediato à pátria.
Agora que a investigação está concluída e documentada, o Dr. Lima é o único suspeito do homicídio e o Brasil gostaria que o senhor fosse extraditado para o julgar convenientemente e o presentar com uma pena de prisão que rondará os 30 anos. Acontece que Portugal não tem acordo de extradição com o Brasil, pelo que o presumível homicida ficará deste lado do mar, para ser julgado pensaríamos nós. Mas não, a lei portuguesa não se obriga a tal e, tendo em conta a dificuldade em reconstituir por cá o que por lá se passou, o mais certo é o processo não dar em nada, isto é, o homem não será condenado ou a probabilidade de o ser é ínfima. No entanto, precavida, a nossa preciosa Justiça pensou em tudo e prevê, no quadro penal, uma hipótese em que o presumível assassino pode ser engavetado numa prisão portuguesa, com certeza com vistas e amenidades mais confortáveis do que as congéneres brasileiras. Segundo essa alternativa, a justiça portuguesa poderá analisar o caso, talvez condenar o homicida a pena de prisão efectiva e se este der o seu acordo será então aferrolhado numa cela.
Saiba, então, cara(o) ouvinte, como proceder em caso de ter alguém que o incomoda: escolha um país sem acordo de extradição com Portugal (o Brasil é destino muito prático, tendo em consideração a língua e o clima), convença a sua vítima a ir até lá, enfie-lhe um tiro entre os olhos (um lugar bastante seguro em termos de resultados) e regresse a Portugal no primeiro voo. 
Depois, é só aguardar com toda a calma, evitar viajar para países onde os mandatos internacionais de extradição com o Brasil estejam em vigor, e, claro, negar sempre tudo. No final, o pior que lhe pode acontecer é perguntarem-lhe se consente em ir preso. Se sentir alguma tentação em responder “sim” consulte antes o seu psiquiatra.

Nota: “Ri melhor quem ri impune” é frase de fecho da canção “Profissionalismo é isso aí” de João Bosco e Aldir Blanc.

© Fotografia de Pedro Serrano, 2011.

30 outubro 2011

VOU-TE CONTAR: 43. A mosca e o hipopótamo


Estou sentado, de pernas cruzadas, no tapete da sala da casa mais antiga. A porta que dá para o quintal está aberta, lá de fora chegam cantos de pássaros, uma luz amortecida de outono. Estou a ler o Tintim no Congo, numa parte de imenso suspense que tem a ver com um hipopótamo. Uma mosca pousou-me na perna, é a sexta vez que o faz nos últimos cinco minutos e é sempre a mesma mosca, sei porque a tenho controlado pelo canto do olho. Pousa-me na parte de coxa livre, entre a bainha da perna dos calções e o joelho, eu abano a perna, ela voa e pousa no abat-jour de metal em feitio de chapéu de chinês sob o qual a minha mãe mexe a agulha sem parança, como se regesse uma orquestra; volta à minha perna, sacudo-a, ela levanta voo e aterra no caixilho inferior do vidro da janela, fica ali a passear na massa de vidraceiro do rebordo e regressa à minha coxa, pousa sempre no mesmo pedaço de pele.
Agora estou preparado, encostei o Tintim devagar contra o colo, tenho o corpo teso, a atenção focada e a mão pronta, semifechada numa garra em forma de concha. Tem-me chateado tanto que não a vou esmagar logo com uma palmada; reservo-lhe outra sorte.
Pousou; deixo-a passarinhar um pouco pela pele, para que se convença que está segura. Lá está ela, toda contente, a esfregar a cabeça entre as patas, se eu fizesse o mesmo com a força com que ela o faz a minha cabeça decerto rolaria pelo chão.
Fíchetttt! Com um movimento rápido apanhei-a na concha da mão, ela zune lá dentro, aprisionada. Afasto, quase nada, dois dedos, de modo a criar um pequeno espaço: cai na esparrela, tenta escapar-se por ali. Agora está encravada, pinço-a com a outra mão. Arranco-lhe primeiro uma asa e depois a outra, a seguir ponho-a no chão de tacos encerados. Sem asas parece outro bicho, fica ali a andar sem rumo, meio aos bordos, pouco confortável na nova situação de animal terreno, à mercê de todos que lhe queiram mal. Agora, qualquer manada de formigas a pode cercar e arrastar para o formigueiro, qualquer gato lhe pode dar umas patadas e trincadelas; eu mesmo, a qualquer segundo que me apeteça, posso encher-me de a ver para ali a zunir e a rodar sobre si própria como uma estúpida e dar-lhe com o livro do Tintim, ou esmagá-la com a sola da sandália.
“Que foi?”, perguntou a minha mãe levantando a cabeça do tricot.
“Nada”, respondi, “era uma mosca a chatear...”
“Assim dás cabo do livro...”, disse ela, aproveitando logo para fazer a sua pedagogia livreira, “olha que os livros são o nosso melhor amigo...”
“Eu sei”, respondi abrindo o livro onde ia.

© Fotografia: Pedro Serrano, Outubro 2011.

26 outubro 2011

VOU-TE CONTAR: 42. Dá-me lume


Da esquerda para a direita: eu, Augusto.
O Augusto era da minha idade e filho do Alberto dos Olivais, um lavrador que morava ao cima da rua, mesmo ao lado do larguinho onde, em Queirã, ficava a capela da nossa família.
Este Alberto dos Olivais era homem que o meu pai respeitava e deste modo eu tinha carta branca para frequentar a sua casa, vagabundear livremente pelos campos e matas com o filho dele desde que prometesse não me aproximar de poços e das extintas bocas de minas do volfrâmio. O Augusto era o filho mais novo, o outro filho chamava-se Hermínio e havia também um rafeiro cruzado de perdigueiro, amarelado, que respondia ao chamamento de Raboto por lhe terem cortado a cauda, de modo que o bicho, quando me via chegar, mostrava o seu contentamento abanando o toco remanescente.
Em casa do Alberto dos Olivais tomei contacto com um estilo de vida  muito diferente do que estava habituado. Faz parte das minhas memórias mais vincadas um almoço em casa deles em que nós os cinco (pai, mãe, os dois irmãos e eu, o convidado) abancados a uma mesa nos achámos perante uma bacia de folha onde luzia, fumegante, um cozinhado de carne de porco, feijão e couves. Não havia pratos, cada um contava apenas com um garfo para picar o que tinha à sua frente. Recordo a leve sensação de repulsa inicial, misturada ao não saber como proceder em termos de etiqueta alimentar. No ganhar de coragem, atrasei-me um pouco, observei como os outros faziam e espetei o garfo no intervalo que me cabia naquela azáfama. Que bom, que fantasticamente saborosas aquelas tiras de entrecosto, de focinho e orelha de porco cozidas com feijão e couves, não mais voltei a comer igual. Não mais, também, o Augusto me voltou a encarar como quando éramos pequenos e fazíamos barquinhos com casca de pinheiro gentilmente escavada, chegou mesmo, para desgosto meu, a passar a tratar-me por “senhor doutor”; o tempo destrói toda a ilusão.
Da direita para a esquerda: Augusto, eu.
Com o Augusto, entre os dez e os doze anos, antes de começar a levar os meus próprios amigos urbanos para a casa de quinta que fora a dos meus avós paternos, aprendi muitas coisas: a caçar escorpiões e sardões; a fazer canas de pesca e a não-pescar nada na ribeira da Levada; a apanhar rãs e a soprar-lhes ar na cloaca com uma palhinha de modo a que não conseguissem mergulhar e fugir; a cagar no meio dos campos e a limpar o cu a folhas de videira; a fazer cachimbos com nós de cana seca e a atafulhá-los com barbas de milho, escondidos no meio dos milheirais, um fio acre de fumo branco denunciando a nossa presença. Só nunca consegui mover-me tão bem descalço como ele nem a dar palmadas no lombo das vacas com tanta descontração.
De tudo o que aprendi e partilhei com ele, o que relembro com mais nitidez são as nossas caçadas aos escorpiões, conhecidos como licranços ou alacraus na terra do meu pai. Ele sabia a técnica, eu lia coisas sobre esses artrópodes aracnídeos em livros da colecção Verbo e deste entrecruzamento entre teoria e prática cresceu a nossa sabedoria no assunto.
Setembro, o longo mês que passávamos na nossa casa de Queirã, era ainda um bom mês para escorpiões (Buthus occitanus), pois os dias eram quentes e soalheiros e os lacraus preferem o sol. Constroem as tocas, de entrada rectangular, ao contrário da circularidade preferida pela maior parte dos animais, debaixo de pedras batidas pelo sol, não se encontram escorpiões em locais húmidos e soturnos.
Caçávamo-los às horas de torreira pelas pedras que ladeavam o caminho que na Levada conduz à ribeira que, fresca e gorgolejante, atravessava sob a azenha e dividia a zona de pinheiral das terras de cultivo de milho e da plantação de choupos.
De cócoras, em frente a uma fenda rectangular escavada onde o pedregulho tocava o chão do caminho, pousávamos cuidadosamente o frasco de vidro, o pauzito descascado de pinheiro e o raminho de giesta, os únicos artefactos técnicos necessários ao aprisionamento daquele bravo animal que, apesar do tamanho diminuto (o comprimento de um dedo indicador), era tão temível no ataque que uma picadela sua bastava para liquidar animais pequenos e deixar a gemer de dor durante vários dias o adulto mais afoito e descuidado.
A primeira etapa da caçada consiste em virar a pedra sob a qual se poderá acoitar o escorpião e isso já exige alguma sabedoria, pois o acto deve ser praticado usando um pau ou um pé bem calçado. A imprudência de o tentar fazer enfiando os dedos próximos da base da pedra pode ser a morte do artista, pois, a existir ali um lacrau, ele estará tão tenso como nós perante o que o aguarda.
E era sempre com a garganta seca, o coração a martelar nos ouvidos, que virávamos o calhau e dávamos um preventivo salto atrás.
Descoberto, o animal avançava para fora da toca de rabo espetado no ar, na extremidade do qual, na ponta de uma ampola mais escura do que o amarelo torrada-com-manteiga do corpo, chispava, encurvado, o temível ferrão, pronto a dar uma estocada na primeira coisa que se chegasse. Ao mesmo tempo que assumia esta pose agressivamente defensiva, o lacrau tentava ir andando para outras paragens mais seguras e a coberto, pelo que era preciso ser rápido e começar por travar-lhe a fuga desde logo. Faziamo-lo usando a pauzito de pinheiro com que se comprimia levemente a cabeça de caranguejo do animal. Ele ali ficava, preso e furioso, tentando abocanhar o pau com as pinças e desferindo o ferrão na madeira. Entretanto, já eu, ou o Augusto, tinha laçado um nó corrediço na haste da giesta, argola na qual tentávamos aprisionar a cauda erecta do escorpião. Conseguido isto, mais fácil de escrever do que de fazer tal o trémulo que nos acometia, era só apertar o nó, suspender o animal no ar, metê-lo cuidadosamente no frasco e aferrolhar a tampa com um suspiro de alívio.
Então, e só então, era lícito e seguro olhar o bicho de perto, através da transparência segura da espessura do vidro.
Regressados a casa, subia as escadas a correr em direcção ao quarto de banho, enquanto o Augusto ficava acocorado no terreiro a vigiar a presa vitrificada. Mas o frasco de álcool etílico estava quase vazio, de tanto ser usado para embalsamar bicharada, e só nos restava a alternativa de encher a prisão de vidro com aguardente, produto conservante que havia às dezenas de litro na adega por baixo da casa.
E lá se ia o bicho desta para melhor, entre o emborrachado e o afogado, contorcendo-se no estertor, mas não tanto como aquele outro parente seu que, para tentarmos confirmar a teoria de que  escorpião aprisionado em anel de fogo se suicida enterrando o ferrão em si próprio, morreu carbonizado ao tentar atravessar o círculo flamejante que eu e o Augusto laboriosamente tínhamos construído sob o olhar curioso e sadicamente divertido do meu pai que, por trás de nós, nos ia picando:
“Vejam lá onde põe as manápulas, se as encostam ao bicho quem fica a arder são vocês!”  

Fotografias, de cima para baixo: (1) e (2) Queirã, Eduardo Serrano, 1965; (3) blog Geocaching; (4) blog Planeta Vida.

23 outubro 2011

MEA CULPA, MEA CULPA

Agora que Muamar Kadafi levou, literalmente, um tiro nos cornos, erguem-se piedosas vozes institucionais clamando por um rigoroso inquérito que determine se o tipo morreu do tiro na cabeça ou antes de um tiro no abdómen, quem o poderá ter matado e outras trivialidades inúteis do género e do costume. 
Pessoalmente falando, acho que a morte do homem foi perfeitamente justa e harmónica tendo em conta o passado que lhe conhecemos: Kadafi morreu como um rato, tentando esconder-se num tubo de esgoto e quem o matou foi alguém que não quis perder uma tão grande oportunidade.
A exposição, um pedaço de carne a que se tira fotografias como um souvenir, não é um espectáculo muito composto, mas convenhamos que, ao menos, ele não sente nada e o mesmo não pode ser dito dos milhares a quem torturou e matou.
Assim sendo, não gastemos cera com tão ruim defunto e deixemos os líbios venderem o seu petróleo em paz.


© Fotografia: Pedro Serrano, Lisboa, Julho 2011.

20 outubro 2011

VOU-TE CONTAR: 41. Bodas de diamante

Os meus pais casaram-se na Capelinha das Aparições, em Fátima. Isto passou-se em 1949, pouco mais de trinta anos depois de a Virgem ter feito a sua azinhagem ali mesmo, pelo que o local estava ainda cheio de magnetismo.
Ao casamento assistiram os pais da noiva e, como o noivo já não tinha pais que se vissem, a irmã mais velha do meu pai e o respectivo marido. Não houve boda e os recém-casados seguiram directamente para uma lua de mel no Algarve.
A versão oficial, vendida nas décadas seguintes, para uma tal esqualidez de cerimónia devia-se ao facto de o noivo não ter pais vivos, mas eu nunca comprei muito a teoria. Apesar de órfão, o meu pai tinha dez irmãos e parentela suficiente para encher uma igreja e ensombrar os dourados e cristais das salas do casarão dos meus avós no Porto.
Repare-se na cara de toda a gente na fotografia: o preto e branco não explica o congelado de tanta sisudez, à qual apenas escapam o sorriso deslavado da minha mãe e o ar confiante da expressão do meu tio Augusto. Pelo contrário, a disposição do meu avô Heitor não se poderia querer mais saturnina. Aquilo não era, deduzo, coisa que lhe agradasse.
A minha mãe, repare-se, era, à época, uma jovem princesa, filha de banqueiro, com todas as prendas e predicados necessários a um bom casamento, era até bonita e falava francês. E o que lhe calhou na rifa foi um tipo dez anos mais velho, um pelintra chegado de um cu de judas onde andava tudo descalço e as ruas eram atapetados com tojo e merda de quadrúpede; um fiancé que para se acabar de licenciar em Medicina tivera de andar a esgravatar nas minas de volfrâmio durante a segunda grande guerra. Praticamente sem ter onde cair morto e, mais grave ainda, sem antecedentes que se vissem ou se pudessem encontrar nas páginas de alguma obra heráldica da extensa biblioteca da casa dos meus avós maternos, na pavimentada cidade do Porto. O noivo tinha, no entanto, duas qualidades que talvez não brilhassem muito aos olhos de pai cauteloso do meu avô Heitor: inteligência e uma força de vontade de ferro, como as décadas seguintes não cansariam de demonstrar.
Sem mãe desde a infância, com um pai que o ia visitar ao seminário sobretudo para encomendar paletes de missas pelas almas dos fiéis defuntos, o meu pai teve de crescer depressa e praticamente sozinho. Quem, perante os seus olhos, funcionou como figura materna foi a minha tia Céu, a irmã mais velha que lhe serviu de madrinha no casamento. Essa minha tia morava em Viseu com o marido, professor primário de profissão mas músico de coração. O meu tio Augusto era um daqueles seres de alma pura, a sua simples presença física despertava um respeito carinhoso em quem estava por perto e os meus pais eram-lhe gratos e devotados.
Nos anos 50, era tão pequeno que nem disso me lembro, a filha mais velha deles, a minha prima Natalinha, viveu na nossa casa mais antiga enquanto se licenciava em Matemáticas. Foi durante o curso que conheceu na universidade aquele que viria a ser o seu marido para uma vida inteira, um engenheiro electrotécnico de porte reservado e perfil aristocrático e que, por feliz coincidência, se chamava também Augusto como o futuro sogro.
De modo que se pode dizer que a minha prima Natalinha e o meu primo Augusto casaram da nossa casa e, logo, rápido, a vida levou-os para morar em Lisboa, onde fizeram a vida. Das primeira visitas que lhes fizemos já me lembro vagamente: moravam num pequeno apartamento em Queluz e uma vez por ano ou assim lá íamos nós ao Jardim Zoológico, ver os Jerónimos e os Paços de Sintra, ficando alojados em casa da Natalinha, pois amor com amor se pagava.
Depois, a vida dos meus pais melhorou economicamente, a da Natalinha e do Augusto também; eles tiveram três filhos e mudaram-se para um solarengo e enorme andar nos Olivais e nós, nas visitas seguintes a Lisboa, passámos a ficar instalados no hotel Liz, ali na avenida da Liberdade. Nesses dias, Lisboa parecia-me muito mais moderna do que o Porto e era fascinado pelos hors d’ouvre das refeições no hotel e pelas fotografias a cores dos combinados que encimavam os balcões dos restaurantes lisboetas e que me apetecia experimentar todos, começando no n.º 1 (carne assada, ovo cozido, salada-russa e pickles), indo por ali fora até ao final da ementa plastificada.
Adolescente, quis aventurar-me pelo mundo e Lisboa era, aos catorze anos, o lugar mais longínquo e exótico a que me deixavam ir sozinho. Mas os meus desvarios diurnos eram sempre enquadrados por um regresso ao andar dos Olivais da Natalinha, onde tinha de regressar a uma hora que me permitisse estar sentado com eles à hora do jantar, olhando com um ar invisivelmente irónico as rezas que antecediam a sopa.
Ah, mas durante a tarde podia vaguear como quisesse pela cidade e percorria a avenida de Londres com o similar inebriamento que outrem pode sentir ao olhar as montras da 5.ª Avenida, em Nova York, e por aí comprei, na discoteca Sinfonia, as mãos trémulas de reverência, a minha cópia do recém-saído Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um disco ainda impossível de encontrar no Porto.
Não penso que a Natalinha e o Augusto, formatados na música italiana e francesa dos anos 50 dos seus tempos de namoro, apreciassem muito o destempero dos Beatles, mas nunca se queixaram dos decibéis ou de eu lhes ter gasto a agulha de diamante do gira-discos de tanto ter rodado o vinil na hospitalidade sulista do seu andar nos Olivais.   

© Fotografias: fotógrafos desconhecidos; (1) Fátima; (2) local desconhecido; 1949.

PORTUGAL CONTROVERSO

© Fotografia: Pedro Serrano, Ponte de Sôr, Outubro 2011.

15 outubro 2011

O PAI DO NOIVO


Quem, vindo de Coimbra, chega a Viseu, entra na cidade por uma avenida ladeada de tílias que, infere-se pelo porte, estão ali há longas décadas.
Por boa parte das minhas costelas terem origem na zona, frequento a cidade há tempo suficiente para me ter sido possível observar aquelas árvores crescerem e altearem-se no céu, acabando por ocultá-lo e transformando a alameda num frondoso túnel que, no começo do Verão, derrama sobre os passantes uma fragrância doce que enche os pulmões e tão logo a alma de uma balsâmica sensação. Mas nem todas as evocações daquele dossel arbóreo são tão harmónicas como quando, na última semana do passado mês de Setembro, guiei sob elas de janelas abertas a caminho do centro da cidade e do hotel Grão Vasco.
Dozes anos antes, num sombrio e gelado Outubro, descera aquela mesma avenida com o coração apertado, sem olhos para reparar na coloração que se amarelava nas folhas das tílias e na aragem cortante que estremecia as copas.
Nesse dia, depois de um telefonema na madrugada, rumei a Viseu para o velório e o funeral de uma amiga, ela própria mulher de um grande amigo, uma daquelas relações que se põe em marcha, insidiosa e incipiente, por razões de proximidade profissional mas que o tempo – e os momentos bons, maus e difíceis que sempre traz consigo – transformara em laços que pouco se distinguem dos de sangue.
A Judite era uma mulher ainda nova, um cancro, que parecia curado pelos sete anos de acalmia com que nos seduzira, deixou dois rapazes órfãos e um viúvo inconsolável, tão desamparado que fez arrepiar os amigos, de preocupação e impotência, perante aquela ferida que não ganhava bordos de cicatriz, perante aquela vida que parecia ter perdido o sentido. E Viseu, uma cidade tão benévola, ganhou contornos de canto tristonho, a própria avenida das tílias se volveu num passeio acabrunhado as vezes que por ali voltei a passar, as recordações daquele Outono gelado estremecendo-me a memória.
Os anos passaram e no interior deles vi o meu amigo Zé expandir-se do pai extremoso que sempre fora para contornos maternais, num desdobramento que acarinhasse e protegesse o crescimento dos dois filhos, um deles adolescente quando a mãe morreu, o outro, mais novo, forçado a encerrar uma infância à pressa.
Este Setembro (ano da Graça de 2011), Filipe, o filho mais novo do meu amigo Zé, ia-se casar com Isabel, a sua namorada de sempre, uma paixão que se acendera aos catorze anos no recreio do liceu (ali mesmo, ao lado da avenida das tílias) e os convites foram expedidos com uma antecedência que quadrava bem com o espírito metódico do pai do noivo e com a sua vontade em fazer do casamento um acontecimento inesquecível, motivos que só compreendi em todo o seu alcance no próprio dia da cerimónia.
A igreja do Carmo é uma das mais centrais e requisitadas igrejas de Viseu e a sua riqueza interior de talha dourada e azulejaria anil é tão bem combinada que ali, ao contrário de outras igrejas, não é necessário andar a ocultar as imperfeições ou a insipidez do cenário com os disfarces de arranjos florais profusos e esmagadores.
Sendo muitos os convidados, mais de três centenas, a igreja encheu-se ainda antes de tudo começar e, na coxia de uma fila bem situada, eu e a Ana observávamos tudo com uma atenção fresca.
Senti uma primeira emoção quando o Hallelujah (do moteto "Exultate Jubilate"), de Mozart, se elevou no ar, cantado por uma voz feminina que se erguia perfeita nas alturas. Mas a impressão passou e continuei, entre o divertido e o surpreendido, entretido a observar as crianças brincarem, para grande nervosismo social dos pais, sobre a passadeira vermelha por onde a noiva, bonita no seu vestido escamado de sereia e afivelando um sorriso tenso, passara há pouco pelo braço do pai.
A minha atenção foi de novo requerida ao altar quando vi o Zé subir as escadas. A princípio, não muito conhecedor da sequência da liturgia, ainda pensei que fosse ler uma daquelas passagens tipo:
“Naquele tempo, disse Jesus aos Coríntios...”
Mas não, o homem alisara um papel sob o microfone e começou a ouvir-se aquilo que era um discurso cuidadosamente preparado. 
Tendo em consideração o emotivo que pode ser o meu amigo, e ainda mais agarrado à forma do que ao conteúdo, debrucei-me para Ana, segredei:
“Oxalá ele se aguente até ao fim...”
Mas, às tantas, quem não se aguentou fui eu! O discurso do Zé era um misto de celebração da felicidade que representava para ele o ter-se chegado àquele momento, entremeava alguns conselhos e desejos para o novo casal e terminou relembrando todos os que foram pilares naquelas duas vidas que ali se juntavam, nomeadamente a mãe do noivo que, decerto, muito gostaria de ter estado presente no casamento do seu benjamim.
Assim, na falta de aviso de recepção com que estas coisas sempre atacam, vi desfilar nos meus olhos interiores aquelas duas dezenas e meia de anos que se tinham passado e as lágrimas que me encheram os olhos, a comoção que me estrangulou ainda mais que o colarinho, resultaram da visão do trajecto de vida do meu amigo, no qual se entrelaçava o meu próprio percurso, o todo ponteado pelos olhos, também antigos, de alguns dos que ali estavam, os presentes e os ausentes.
O pai do noivo.
Encabulado, olhei discretamente para a Ana que, muito empertigada e olhando em frente, tinha os olhos brilhantes de água e, para além dela, outra, muita outra gente, nos bancos da igreja, que, como nós, tinham testemunhado o percurso difícil daquele tipo que ali, em cima do púlpito dourado, celebrava o momento com palavras apetrechadas de asas, com as palavras pacificadas e pacificadoras de quem conseguiu chegar. E, no fim do discurso do Zé, aconteceu aquilo que eu achava que uma intervenção daquelas estava mesmo a pedir, embora supusesse que não era habitual em igrejas. Pela nave da igreja, quente, longa, persistente, ecoou uma salva de palmas que ficou a vibrar no ar muito depois de um emocionado pai do noivo ter regressado ao seu lugar de figura secundária.


© Fotografias: (1) e (3) de Pedro Serrano; (2) José Raposo,. Viseu, Setembro 2011.

13 outubro 2011

PERDIDOS & ACHADOS


A ideia, combinada no dia anterior, no final do casamento, era tomarmos o pequeno-almoço juntos antes de cada um debandar para seu lado.
“Ó, pá, qualquer coisa leve, tipo tosta mista ou assim; não me quero empanturrar com almoçaradas…”, fui avisando eu, ainda cheio do desvario de comida da véspera e gato-escaldado das boas mesas que abundam por Viseu.
“Eu quero sair cedo”, alertou outro, “para não chegarmos de noite…”
Toda a gente achou bem. Na véspera, quero eu dizer.
Aquele último Domingo de Setembro amanheceu em azul e dourados e, por volta do meio-dia, encontrámo-nos os seis nas escadas do hotel, olhando com deleite a luz coada através dos grandiosos plátanos que sombreiam o parque de estacionamento do Grão Vasco.
Sem rumo, na busca de uma esplanada aprazível para o tal pequeno-almoço tardio, fomos deambulando pelas ruas mornas e pacatas de Viseu e quando dei por mim estava abancado à protecção de uma das muralhas da zona da Sé a comer morcela assada com grelos…
“Vamos só ali espreitar o claustro da Sé...?”, propôs, no fim do almoço, um de nós que nunca lá entrara.
Duas horas depois, sentados noutra esplanada do centro da cidade, tomámos café enquanto mirávamos com satisfação de proprietário os sacos com o pão-de-azeite, as empadas de galinha, o pão-com-erva-doce, a bôla de sardinha e outras raridades que só se encontram em Viseu e que com tínhamos tido a dita de topar.
Saí da cidade era já tarde avançada e a luz do sol declinante, batendo de chofre no para-brisas e encandeando-me os olhos, mais as sucessivas rotundas em que tropeçava fez com que perdesse a ligação à A25 e me confundisse por uma estrada secundária, guiando sem indicação alguma para onde me dirigia.
Entretanto o disco do sol desaparecera e a paisagem por onde me movia, uma estrada estreita ladeada por pinheiros, castanheiros e matas de carvalhos, banhava-se na calmaria silenciosa que antecede o crepúsculo. Mais ao longe, acima do nível imediato dos meus olhos, uma crista de serrania assumia um contorno uniforme, nos tons azul-lilás de um réptil que se prepara para dormir. A música que, distraidamente, vinha a ouvir, fez-se notar por ter findado e seguiu-se o silêncio que, a partir do porta-CD aparafusado na mala do carro, precede a escolha e entrada em funcionamento do CD seguinte. Acolhi a coincidência sonora com um sorriso ao reconhecer as notas de piano iniciais do primeiro andamento do Nocturno n.º 1 (opus 9) de Chopin.
Sim, serpenteava ao sabor de uma estradita cheia de curvas na qual era raro cruzar-me com alguém, onde o entardecer vestira as árvores de um manto reflexivo e a minha banda sonora não podia ser mais apropriada, pois também a música propiciava um ambiente em que pouco mais sobrava do que eu e a natureza lá fora. Uma paisagem que sempre estivera ali, como se esperasse, imutável e longe do ruído do mundo, que me desse conta dela e que, só pela presença, me ia demonstrando a cada curva do caminho que “nada resta para além disto, viajante, tudo o mais, cedo ou tarde, se tornará longínquo e imponderável”.
Tocava-se agora o larghetto do opus 15 e, à esquerda da berma, vi surgir uma pequena placa; finalmente iria saber onde estava, pensei. Embora, à escala lógica, a sequência de coincidências se estivesse a tornar cada vez mais improvável, foi quase sem surpresa que dei a informação como adquirida: a placa que ficara para trás indicava um acesso desconhecido a Queirã, a aldeia perdida nas faldas do Caramulo onde nasceu o meu pai e onde, anos a fio, passei os Setembros da infância e adolescência.
Continuei a guiar e, sentindo-me  bem na minha pele como quem acaba de sair de um spa com massagem, desaguei em S. Pedro do Sul, localidade em que, após aquelas duas dezenas de km sem rumo, encontrei a primeira placa que indicava o meu destino mais imediato. Em Vouzela, já noite cerrada, entrei na IP5 e misturei-me às sombras rápidas que, guiadas pelo farejar dor faróis, demandavam com urgência o litoral.

© Fotografia de Pedro Serrano, Viseu, 2011.

08 outubro 2011

ARRE, PORRA!


Tenho reflectido 

Um bom bocado nisso.
Os meus poemas são
Como quando
Ao martelo anseia o dedo, 
Em vez do prego.
Fechar o caderno 
Após o poema,
Esvaziar o peito 
No ocaso d'um palavrão,
São estróficas atitudes.





© Fotografia: Pedro Serrano, Torres Vedras, 2011.

07 outubro 2011

05 outubro 2011

Haikus: QUEBRADAS TRÉGUAS





© Foto: Pedro Serrano, Outubro 2011.
1. 
Abandonadas no campo de batalha
Mordiscam a erva esparsas éguas
Quebradas tréguas

2.
Zune a melga de Outono a sua toada
Zás, como uma súbita nuvem,
A almofada 


04 outubro 2011

DEBAIXO DA LÍNGUA


© Foto: Pedro Serrano, Porto, 2010.

Não removas do cesto da reciclagem
Mesmo em caso d’excesso de bagagem
Recordações perdidas, outros trastes


As palavras paralisadas sob a língua
Insalivadas são para que germinem
E em repentina visita nos iluminem