Os meus pais casaram-se na Capelinha das Aparições, em Fátima. Isto
passou-se em 1949, pouco mais de trinta anos depois de a Virgem ter feito a sua
azinhagem ali mesmo, pelo que o local estava ainda cheio de magnetismo.
Ao casamento assistiram os pais da noiva
e, como o noivo já não tinha pais que se vissem, a irmã mais velha do meu pai e
o respectivo marido. Não houve boda e os recém-casados seguiram directamente
para uma lua de mel no Algarve.
A versão oficial, vendida nas décadas
seguintes, para uma tal esqualidez de cerimónia devia-se ao facto de o noivo
não ter pais vivos, mas eu nunca comprei muito a teoria. Apesar de órfão, o meu
pai tinha dez irmãos e parentela suficiente para encher uma igreja e ensombrar
os dourados e cristais das salas do casarão dos meus avós no Porto.
Repare-se na cara de toda a gente na
fotografia: o preto e branco não explica o congelado de tanta sisudez, à qual
apenas escapam o sorriso deslavado da minha mãe e o ar confiante da expressão
do meu tio Augusto. Pelo contrário, a disposição do meu avô Heitor não se
poderia querer mais saturnina. Aquilo não era, deduzo, coisa que lhe agradasse.
A minha mãe, repare-se, era, à época,
uma jovem princesa, filha de banqueiro, com todas as prendas e predicados
necessários a um bom casamento, era até bonita e falava francês. E o que lhe
calhou na rifa foi um tipo dez anos mais velho, um pelintra chegado de um cu de
judas onde andava tudo descalço e as ruas eram atapetados com tojo e merda de
quadrúpede; um fiancé que para se acabar
de licenciar em Medicina tivera de andar a esgravatar nas minas de volfrâmio
durante a segunda grande guerra. Praticamente sem ter onde cair morto e, mais
grave ainda, sem antecedentes que se vissem ou se pudessem encontrar nas
páginas de alguma obra heráldica da extensa biblioteca da casa dos meus avós
maternos, na pavimentada cidade do Porto. O noivo tinha, no entanto, duas
qualidades que talvez não brilhassem muito aos olhos de pai cauteloso do meu
avô Heitor: inteligência e uma força de vontade de ferro, como as décadas
seguintes não cansariam de demonstrar.
Sem mãe desde a infância, com um pai
que o ia visitar ao seminário sobretudo para encomendar paletes de missas pelas
almas dos fiéis defuntos, o meu pai teve de crescer depressa e praticamente
sozinho. Quem, perante os seus olhos, funcionou como figura materna
foi a minha tia Céu, a irmã mais velha que lhe serviu de madrinha no casamento.
Essa minha tia morava em Viseu com o marido, professor primário de profissão
mas músico de coração. O meu tio Augusto era um daqueles seres de alma pura, a
sua simples presença física despertava um respeito carinhoso em quem estava por
perto e os meus pais eram-lhe gratos e devotados.
Nos anos 50, era tão pequeno que nem
disso me lembro, a filha mais velha deles, a minha prima Natalinha, viveu na
nossa casa mais antiga enquanto se licenciava em Matemáticas. Foi durante o
curso que conheceu na universidade aquele que viria a ser o seu marido para uma
vida inteira, um engenheiro electrotécnico de porte reservado e perfil
aristocrático e que, por feliz coincidência, se chamava também Augusto como o futuro
sogro.
De modo que se pode dizer que a minha
prima Natalinha e o meu primo Augusto casaram da nossa casa e, logo, rápido, a
vida levou-os para morar em Lisboa, onde fizeram a vida. Das primeira visitas
que lhes fizemos já me lembro vagamente: moravam num pequeno apartamento
em Queluz e uma vez por ano ou assim lá íamos nós ao Jardim Zoológico, ver os
Jerónimos e os Paços de Sintra, ficando alojados em casa da Natalinha, pois
amor com amor se pagava.
Depois, a vida dos meus pais melhorou
economicamente, a da Natalinha e do Augusto também; eles tiveram três filhos e mudaram-se
para um solarengo e enorme andar nos Olivais e nós, nas visitas seguintes a
Lisboa, passámos a ficar instalados no hotel Liz, ali na avenida da Liberdade. Nesses
dias, Lisboa parecia-me muito mais moderna do que o Porto e era fascinado pelos
hors d’ouvre das refeições no hotel e
pelas fotografias a cores dos combinados
que encimavam os balcões dos restaurantes lisboetas e que me apetecia
experimentar todos, começando no n.º 1 (carne assada, ovo cozido, salada-russa
e pickles), indo por ali fora até ao final da ementa plastificada.
Adolescente, quis aventurar-me pelo mundo e Lisboa era, aos catorze anos, o lugar mais longínquo
e exótico a que me deixavam ir sozinho. Mas os meus desvarios diurnos eram
sempre enquadrados por um regresso ao andar dos Olivais da Natalinha, onde
tinha de regressar a uma hora que me permitisse estar sentado com eles à hora
do jantar, olhando com um ar invisivelmente irónico as rezas que
antecediam a sopa.
Ah, mas durante a tarde podia vaguear
como quisesse pela cidade e percorria a avenida de Londres com o similar
inebriamento que outrem pode sentir ao olhar as montras da 5.ª Avenida, em Nova
York, e por aí comprei, na discoteca Sinfonia, as mãos trémulas de reverência, a minha cópia do recém-saído Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band,
um disco ainda impossível de encontrar no Porto.
Não penso que a Natalinha e o Augusto,
formatados na música italiana e francesa dos anos 50 dos seus tempos de namoro,
apreciassem muito o destempero dos Beatles, mas nunca se queixaram dos decibéis
ou de eu lhes ter gasto a agulha de diamante do gira-discos de tanto ter rodado o vinil na hospitalidade sulista do seu andar nos Olivais.
© Fotografias: fotógrafos desconhecidos; (1) Fátima; (2) local desconhecido; 1949.
muito engraçado
ResponderEliminar@ Obrigado anónimo/a
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