26 outubro 2011

VOU-TE CONTAR: 42. Dá-me lume


Da esquerda para a direita: eu, Augusto.
O Augusto era da minha idade e filho do Alberto dos Olivais, um lavrador que morava ao cima da rua, mesmo ao lado do larguinho onde, em Queirã, ficava a capela da nossa família.
Este Alberto dos Olivais era homem que o meu pai respeitava e deste modo eu tinha carta branca para frequentar a sua casa, vagabundear livremente pelos campos e matas com o filho dele desde que prometesse não me aproximar de poços e das extintas bocas de minas do volfrâmio. O Augusto era o filho mais novo, o outro filho chamava-se Hermínio e havia também um rafeiro cruzado de perdigueiro, amarelado, que respondia ao chamamento de Raboto por lhe terem cortado a cauda, de modo que o bicho, quando me via chegar, mostrava o seu contentamento abanando o toco remanescente.
Em casa do Alberto dos Olivais tomei contacto com um estilo de vida  muito diferente do que estava habituado. Faz parte das minhas memórias mais vincadas um almoço em casa deles em que nós os cinco (pai, mãe, os dois irmãos e eu, o convidado) abancados a uma mesa nos achámos perante uma bacia de folha onde luzia, fumegante, um cozinhado de carne de porco, feijão e couves. Não havia pratos, cada um contava apenas com um garfo para picar o que tinha à sua frente. Recordo a leve sensação de repulsa inicial, misturada ao não saber como proceder em termos de etiqueta alimentar. No ganhar de coragem, atrasei-me um pouco, observei como os outros faziam e espetei o garfo no intervalo que me cabia naquela azáfama. Que bom, que fantasticamente saborosas aquelas tiras de entrecosto, de focinho e orelha de porco cozidas com feijão e couves, não mais voltei a comer igual. Não mais, também, o Augusto me voltou a encarar como quando éramos pequenos e fazíamos barquinhos com casca de pinheiro gentilmente escavada, chegou mesmo, para desgosto meu, a passar a tratar-me por “senhor doutor”; o tempo destrói toda a ilusão.
Da direita para a esquerda: Augusto, eu.
Com o Augusto, entre os dez e os doze anos, antes de começar a levar os meus próprios amigos urbanos para a casa de quinta que fora a dos meus avós paternos, aprendi muitas coisas: a caçar escorpiões e sardões; a fazer canas de pesca e a não-pescar nada na ribeira da Levada; a apanhar rãs e a soprar-lhes ar na cloaca com uma palhinha de modo a que não conseguissem mergulhar e fugir; a cagar no meio dos campos e a limpar o cu a folhas de videira; a fazer cachimbos com nós de cana seca e a atafulhá-los com barbas de milho, escondidos no meio dos milheirais, um fio acre de fumo branco denunciando a nossa presença. Só nunca consegui mover-me tão bem descalço como ele nem a dar palmadas no lombo das vacas com tanta descontração.
De tudo o que aprendi e partilhei com ele, o que relembro com mais nitidez são as nossas caçadas aos escorpiões, conhecidos como licranços ou alacraus na terra do meu pai. Ele sabia a técnica, eu lia coisas sobre esses artrópodes aracnídeos em livros da colecção Verbo e deste entrecruzamento entre teoria e prática cresceu a nossa sabedoria no assunto.
Setembro, o longo mês que passávamos na nossa casa de Queirã, era ainda um bom mês para escorpiões (Buthus occitanus), pois os dias eram quentes e soalheiros e os lacraus preferem o sol. Constroem as tocas, de entrada rectangular, ao contrário da circularidade preferida pela maior parte dos animais, debaixo de pedras batidas pelo sol, não se encontram escorpiões em locais húmidos e soturnos.
Caçávamo-los às horas de torreira pelas pedras que ladeavam o caminho que na Levada conduz à ribeira que, fresca e gorgolejante, atravessava sob a azenha e dividia a zona de pinheiral das terras de cultivo de milho e da plantação de choupos.
De cócoras, em frente a uma fenda rectangular escavada onde o pedregulho tocava o chão do caminho, pousávamos cuidadosamente o frasco de vidro, o pauzito descascado de pinheiro e o raminho de giesta, os únicos artefactos técnicos necessários ao aprisionamento daquele bravo animal que, apesar do tamanho diminuto (o comprimento de um dedo indicador), era tão temível no ataque que uma picadela sua bastava para liquidar animais pequenos e deixar a gemer de dor durante vários dias o adulto mais afoito e descuidado.
A primeira etapa da caçada consiste em virar a pedra sob a qual se poderá acoitar o escorpião e isso já exige alguma sabedoria, pois o acto deve ser praticado usando um pau ou um pé bem calçado. A imprudência de o tentar fazer enfiando os dedos próximos da base da pedra pode ser a morte do artista, pois, a existir ali um lacrau, ele estará tão tenso como nós perante o que o aguarda.
E era sempre com a garganta seca, o coração a martelar nos ouvidos, que virávamos o calhau e dávamos um preventivo salto atrás.
Descoberto, o animal avançava para fora da toca de rabo espetado no ar, na extremidade do qual, na ponta de uma ampola mais escura do que o amarelo torrada-com-manteiga do corpo, chispava, encurvado, o temível ferrão, pronto a dar uma estocada na primeira coisa que se chegasse. Ao mesmo tempo que assumia esta pose agressivamente defensiva, o lacrau tentava ir andando para outras paragens mais seguras e a coberto, pelo que era preciso ser rápido e começar por travar-lhe a fuga desde logo. Faziamo-lo usando a pauzito de pinheiro com que se comprimia levemente a cabeça de caranguejo do animal. Ele ali ficava, preso e furioso, tentando abocanhar o pau com as pinças e desferindo o ferrão na madeira. Entretanto, já eu, ou o Augusto, tinha laçado um nó corrediço na haste da giesta, argola na qual tentávamos aprisionar a cauda erecta do escorpião. Conseguido isto, mais fácil de escrever do que de fazer tal o trémulo que nos acometia, era só apertar o nó, suspender o animal no ar, metê-lo cuidadosamente no frasco e aferrolhar a tampa com um suspiro de alívio.
Então, e só então, era lícito e seguro olhar o bicho de perto, através da transparência segura da espessura do vidro.
Regressados a casa, subia as escadas a correr em direcção ao quarto de banho, enquanto o Augusto ficava acocorado no terreiro a vigiar a presa vitrificada. Mas o frasco de álcool etílico estava quase vazio, de tanto ser usado para embalsamar bicharada, e só nos restava a alternativa de encher a prisão de vidro com aguardente, produto conservante que havia às dezenas de litro na adega por baixo da casa.
E lá se ia o bicho desta para melhor, entre o emborrachado e o afogado, contorcendo-se no estertor, mas não tanto como aquele outro parente seu que, para tentarmos confirmar a teoria de que  escorpião aprisionado em anel de fogo se suicida enterrando o ferrão em si próprio, morreu carbonizado ao tentar atravessar o círculo flamejante que eu e o Augusto laboriosamente tínhamos construído sob o olhar curioso e sadicamente divertido do meu pai que, por trás de nós, nos ia picando:
“Vejam lá onde põe as manápulas, se as encostam ao bicho quem fica a arder são vocês!”  

Fotografias, de cima para baixo: (1) e (2) Queirã, Eduardo Serrano, 1965; (3) blog Geocaching; (4) blog Planeta Vida.

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