Quem, vindo de Coimbra, chega a Viseu,
entra na cidade por uma avenida ladeada de tílias que, infere-se pelo porte,
estão ali há longas décadas.
Por boa parte das minhas costelas
terem origem na zona, frequento a cidade há tempo suficiente para me ter sido
possível observar aquelas árvores crescerem e altearem-se no céu, acabando por ocultá-lo
e transformando a alameda num frondoso túnel que, no começo do Verão, derrama
sobre os passantes uma fragrância doce que enche os pulmões e tão logo a alma
de uma balsâmica sensação. Mas nem todas as evocações daquele dossel arbóreo
são tão harmónicas como quando, na última semana do passado mês de Setembro,
guiei sob elas de janelas abertas a caminho do centro da cidade e do hotel Grão
Vasco.
Dozes anos antes, num sombrio e gelado
Outubro, descera aquela mesma avenida com o coração apertado, sem olhos para reparar
na coloração que se amarelava nas folhas das tílias e na aragem cortante que
estremecia as copas.
Nesse dia, depois de um telefonema na
madrugada, rumei a Viseu para o velório e o funeral de uma amiga, ela própria
mulher de um grande amigo, uma daquelas relações que se põe em marcha,
insidiosa e incipiente, por razões de proximidade profissional mas que o tempo
– e os momentos bons, maus e difíceis que sempre traz consigo – transformara em
laços que pouco se distinguem dos de sangue.
A Judite era uma mulher ainda nova, um
cancro, que parecia curado pelos sete anos de acalmia com que nos seduzira,
deixou dois rapazes órfãos e um viúvo inconsolável, tão desamparado que fez arrepiar
os amigos, de preocupação e impotência, perante aquela ferida que não ganhava
bordos de cicatriz, perante aquela vida que parecia ter perdido o sentido. E
Viseu, uma cidade tão benévola, ganhou contornos de canto tristonho, a própria
avenida das tílias se volveu num passeio acabrunhado as vezes que por ali
voltei a passar, as recordações daquele Outono gelado estremecendo-me a memória.
Os anos passaram e no interior deles
vi o meu amigo Zé expandir-se do pai extremoso que sempre fora para contornos maternais,
num desdobramento que acarinhasse e protegesse o crescimento dos dois filhos,
um deles adolescente quando a mãe morreu, o outro, mais novo, forçado a
encerrar uma infância à pressa.
Este Setembro (ano da Graça de
2011), Filipe, o filho mais novo do meu amigo Zé, ia-se casar com Isabel, a sua namorada
de sempre, uma paixão que se acendera aos catorze anos no recreio do liceu (ali
mesmo, ao lado da avenida das tílias) e os convites foram expedidos com uma
antecedência que quadrava bem com o espírito metódico do pai do noivo e com a
sua vontade em fazer do casamento um acontecimento inesquecível, motivos que só
compreendi em todo o seu alcance no próprio dia da cerimónia.
A igreja do Carmo é uma das mais
centrais e requisitadas igrejas de Viseu e a sua riqueza interior de talha
dourada e azulejaria anil é tão bem combinada que ali, ao contrário de outras
igrejas, não é necessário andar a ocultar as imperfeições ou a insipidez do
cenário com os disfarces de arranjos florais profusos e esmagadores.
Sendo muitos os convidados, mais de
três centenas, a igreja encheu-se ainda antes de tudo começar e, na coxia de
uma fila bem situada, eu e a Ana observávamos tudo com uma atenção fresca.
Senti uma primeira emoção quando o Hallelujah (do moteto "Exultate
Jubilate"), de Mozart, se elevou no ar, cantado por uma voz feminina que
se erguia perfeita nas alturas. Mas a impressão passou e continuei, entre o
divertido e o surpreendido, entretido a observar as crianças brincarem, para
grande nervosismo social dos pais, sobre a passadeira vermelha por onde a noiva,
bonita no seu vestido escamado de sereia e afivelando um sorriso tenso, passara
há pouco pelo braço do pai.
A minha atenção foi de novo requerida
ao altar quando vi o Zé subir as escadas. A princípio, não muito conhecedor da
sequência da liturgia, ainda pensei que fosse ler uma daquelas passagens tipo:
“Naquele tempo, disse Jesus aos
Coríntios...”
Mas não, o homem alisara um papel sob o
microfone e começou a ouvir-se aquilo que era um discurso cuidadosamente preparado.
Tendo em consideração o emotivo que pode ser o meu amigo, e ainda mais agarrado
à forma do que ao conteúdo, debrucei-me para Ana, segredei:
“Oxalá ele se aguente até ao fim...”
Mas, às tantas, quem não se aguentou
fui eu! O discurso do Zé era um misto de celebração da felicidade que representava
para ele o ter-se chegado àquele momento, entremeava alguns conselhos e desejos
para o novo casal e terminou relembrando todos os que foram pilares naquelas duas
vidas que ali se juntavam, nomeadamente a mãe do noivo que, decerto, muito gostaria de
ter estado presente no casamento do seu benjamim.
Assim, na falta de aviso de
recepção com que estas coisas sempre atacam, vi desfilar nos meus olhos
interiores aquelas duas dezenas e meia de anos que se tinham passado e
as lágrimas que me encheram os olhos, a comoção que me estrangulou ainda mais
que o colarinho, resultaram da visão do trajecto de vida do meu amigo, no qual
se entrelaçava o meu próprio percurso, o todo ponteado pelos olhos, também
antigos, de alguns dos que ali estavam, os presentes e os ausentes.
O pai do noivo. |
Encabulado, olhei discretamente para a
Ana que, muito empertigada e olhando em frente, tinha os olhos brilhantes de
água e, para além dela, outra, muita outra gente, nos bancos da igreja, que,
como nós, tinham testemunhado o percurso difícil daquele tipo que ali, em cima
do púlpito dourado, celebrava o momento com palavras apetrechadas de asas, com as palavras pacificadas e pacificadoras de quem conseguiu chegar. E, no fim do
discurso do Zé, aconteceu aquilo que eu achava que uma intervenção daquelas
estava mesmo a pedir, embora supusesse que não era habitual em igrejas. Pela nave da igreja, quente, longa,
persistente, ecoou uma salva de palmas que ficou a vibrar no ar muito
depois de um emocionado pai do noivo ter regressado ao seu lugar de figura
secundária.
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