Estou sentado, de pernas cruzadas, no
tapete da sala da casa mais antiga. A porta que dá para o quintal está aberta,
lá de fora chegam cantos de pássaros, uma luz amortecida de outono. Estou a ler
o Tintim no Congo, numa parte de
imenso suspense que tem a ver com um hipopótamo. Uma mosca pousou-me na perna,
é a sexta vez que o faz nos últimos cinco minutos e é sempre a mesma mosca, sei
porque a tenho controlado pelo canto do olho. Pousa-me na parte de coxa livre,
entre a bainha da perna dos calções e o joelho, eu abano a perna, ela voa e
pousa no abat-jour de metal em feitio de chapéu de chinês sob o qual a minha
mãe mexe a agulha sem parança, como se regesse uma orquestra; volta à minha
perna, sacudo-a, ela levanta voo e aterra no caixilho inferior do vidro da
janela, fica ali a passear na massa de vidraceiro do rebordo e regressa à minha
coxa, pousa sempre no mesmo pedaço de pele.
Agora estou preparado, encostei o
Tintim devagar contra o colo, tenho o corpo teso, a atenção focada e a mão
pronta, semifechada numa garra em forma de concha. Tem-me chateado tanto que
não a vou esmagar logo com uma palmada; reservo-lhe outra sorte.
Pousou; deixo-a passarinhar um pouco
pela pele, para que se convença que está segura. Lá está ela, toda contente, a
esfregar a cabeça entre as patas, se eu fizesse o mesmo com a força com que ela
o faz a minha cabeça decerto rolaria pelo chão.
Fíchetttt! Com um movimento rápido
apanhei-a na concha da mão, ela zune lá dentro, aprisionada. Afasto, quase nada,
dois dedos, de modo a criar um pequeno espaço: cai na esparrela, tenta
escapar-se por ali. Agora está encravada, pinço-a com a outra mão. Arranco-lhe
primeiro uma asa e depois a outra, a seguir ponho-a no chão de tacos encerados.
Sem asas parece outro bicho, fica ali a andar sem rumo, meio aos bordos, pouco
confortável na nova situação de animal terreno, à mercê de todos que lhe
queiram mal. Agora, qualquer manada de formigas a pode cercar e arrastar para o
formigueiro, qualquer gato lhe pode dar umas patadas e trincadelas; eu mesmo, a
qualquer segundo que me apeteça, posso encher-me de a ver para ali a zunir e a
rodar sobre si própria como uma estúpida e dar-lhe com o livro do Tintim, ou
esmagá-la com a sola da sandália.
“Que foi?”, perguntou a minha mãe
levantando a cabeça do tricot.
“Nada”, respondi, “era uma mosca a
chatear...”
“Assim dás cabo do livro...”, disse
ela, aproveitando logo para fazer a sua pedagogia livreira, “olha que os livros
são o nosso melhor amigo...”
“Eu sei”, respondi abrindo o livro
onde ia.
© Fotografia: Pedro Serrano, Outubro 2011.
Sem comentários:
Enviar um comentário