30 abril 2013

ABRIL, H2O 1000



Alguma coisa deve ter acontecido em Abril
Uma lua minguante, uma sesta ressonante

Alguma lousa deve ter sido riscada em Abril
Com giz recente, um traço imprudente

Ao ser pousada, na calçada,
Alguma cesta deve ter rangido em Abril

Desfez-se, clara, em águas mil
Alguma coisa se partiu em Abril




© Fotografia de Pedro Serrano, 2013.

29 abril 2013

DOR DI NHA ALMA


Canção: "Dor Di Nha Alma"; autor Betù. Cantora: Lucy; pianista: Manuel Candinho. Ao vivo no Nice's Cachito, Praia (Cabo Verde), Dezembro 2011. © Video de Pedro Serrano, filmado com câmara Leica V Lux-20. 

Duem tcheu
Alma pertam ta tchora
Bo nha rainha c'ainda onte
Juram bo amor

Pa ba na kel mesmo lugar
Cum prova mam'crebô tcheu
Cai na braços ki ka di meu
Ki ka di meu

Magoam la na fund' do coraçon
Corpo derretem
Solvê na mar d'ingratidão

M'ta lembra nos primero beijo
Era segredo d'nos paixão
Pa caba'sim di note pa dia
Note pa dia

Hoje pa bô, mim m'ka nada
Um indiferença
Bo ta spiam
Ka t'odjam
Pior ki morte

Ma disilusão ta dué
Ta quema ki nem lume
Ta foga ki nem agua
T'arasa ki nem vente
Nha amor
Nha fantasia

27 abril 2013

NA ARCA, COM NOÉ


Com raras excepções, são geralmente excelentes os documentários da National Geographic sobre vida animal. No outro dia, na RTP2 (entre as 9 e as 10 da noite, que é quando passam) vi um sobre amizade entre animais de diferentes espécies.
De espanto em espanto, a minha perspectiva do que estava a assistir foi resvalando para um estado entre o emocionado e o maravilhado com o que as imagens pareciam significar. Mas deixem, antes de me dedicar às generalizações, contar um pouco do que vi. Havia um pouco de tudo: Havia o macaco-gibão, de cor branca, braços desproporcionados e pêlo comprido de boneco de peluche, que era meio autista e não conseguia dar-se nem ser aceite por macacos da mesma espécie. Então, um dia, esse solitário descobriu que se comprazia na companhia de macacos-capuchinho, uns bichitos bastante mais pequenos, de cor, hábitos e espécie diferente e que olhavam o intruso algo espantados, mas o toleravam na proximidade dos ramos onde saltaricavam.
“Mas isso sempre era entre macacos, não é lá muito esquisito”, dirão os ouvintes, “afinal são todos meios primos... até nossos!”
OK, e o que me dizem a uma amizade entre uma tartaruga e um ganso? Era uma tartaruga grande que, como quem se desloca à força de remos, se movia pesadamente em terra, e um ganso, vá lá saber-se o porquê, escolheu-a como companheira inseparável, seguindo-a para todo o lado e atacando, num proteccionismo histérico de mãe, qualquer outro ganso ou tartaruga que se aproximasse do réptil enquanto este se alimentava ou espadanava nas águas. Seguiu-se a história do chacal e do leão, predadores incompatíveis, criados juntos desde a infância num centro para animais abandonados. No começo houve uma altura em que ambos tinham porte semelhante, pois todos os bebés, mesmo os órfãos, são pequenos e fofos. Mas depois o leão desabrochou numa bisarma e, à beira dele, o chacal não era mais do que um animalzeco fanhoso e despenteado, de dentuça arreganhada e expressão desdenhosa, que o outro destruiria numa única sapatada. Mas era vê-los brincando em companhia, o chacal em provocação permanente do leão, e este abocanhando-o com ternura e controlando na perfeição a consciência das mandíbulas ou a energia das patadas.
Agora o cenário era uma quinta, vizinha de uma floresta, e os donos da quinta, lavradores sensíveis, eram-no também de uma cadela grand danois, quase negra. E eis que, surgida do mistério do bosque, aparece uma manhã no quintal uma pequena gazela cor de mel, provavelmente órfã, que se abandona à cadela como se esta pudesse ser a mãe perdida, tentando até mamar nas tetas da surpreendida cadela! Cadela que, como é vulgar nos cães, encarou toda aquela carência com serena naturalidade e tratou de educar a trêmula bichinha nos sólidos princípios que qualquer cão bem-educado deve seguir. O tempo passou, a gazela cresceu e o apelo da floresta, ali ao lado, tornou-se poderoso. A gazela desapareceu, a cadela passou a olhar com renovada atenção para o lado das árvores, de vez em quando dava uma volta pelo bosque. Até que um dia, perfeitamente adulta e já mãe, a gazela reapareceu para visitar a antiga casa e rever a mãe adoptiva. É de uma beleza que não necessita legenda, vê-las ambas em marradinhas ternas, em entrelaçar de pescoços ou, numa felicidade volvida movimento, em correrias sobre a erva verde do terreiro nas traseiras da floresta.

No entanto, a sequência de que mais gostei foi a do cavalo e do bode. O cavalo andava nos 40 anos, o que é muita idade para um animal destes, pode considerar-se que era um cavalo centenário. E as marcas do tempo tinham-se feito sentir: artroses nas articulações, uma catarata num olho, depois no outro e eis o animal sem autonomia, inclusive a de procurar alimento e se alimentar. Consternados, os donos chegaram à conclusão que não restava outra solução se não a de abaterem o ancião. E eis que o milagre desce e se revela num personagem da própria família que vivia na propriedade: por lá coabitava também um velho bode que, de súbito, pareceu dar-se conta do drama e passou a considerar como sua a função de tomar conta do diminuído companheiro. O filme ilustra bem a situação: todas as manhãs o bode vai ter com o cavalo e, mantendo-se sempre à sua frente e a uma distância que o outro possa sentir, controlando com um olho se o outro o segue convenientemente, condu-lo aos locais de melhor pasto, onde, pacientemente, fica à espera que o amigo se alimente. Em seguida leva-o a passear por ambientes adequados à condição do cavalo, orienta-o por terrenos pouco acidentados, mostra-lhe clareiras onde o sol banha a terra de um calor benéfico a quem já está na idade de resguardar pernas com mantas... E, ao fim do dia, condu-lo de volta ao estábulo. Este procedimento manteve-se, diariamente, por vários anos, até que um dia o cavalo morreu naturalmente, de velhice.
“E o bode?”, sinto todos vocês questionar. Pois o bode passou a comportar-se como sempre se comporta um bode: voltou à vida na quinta, nunca mais percorrendo os caminhos em que pastoreara o cavalo, enfim, agindo como se nunca tivesse existido um cavalo cego que não conseguia alimentar-se sozinho.
Bem, agora que a história está contada, cada um que pense o que quiser disto tudo, mas não me venham mais dizer que sentimentos ou estados como a amizade, a compaixão ou a consciência do mundo que nos rodeia é exclusivo da raça humana. O que talvez seja exclusivo da raça humana, como parece apontar o comportamento final do bode velhote, é o sentimentalismo piegas, lá no fundo mais centrado em nós do que no interesse pelos outros.

© Fotografias: National Geographic.

20 abril 2013

UNHAS PARA QUE TE QUERO

Todos reconheciam que não tinha unhas para aquele cargo, para o qual fora convidado pelo próprio primeiro ministro. Mas ele não se atrapalhou, pediu à manicura que lhas fizesse. O brilho do seu jogo de mãos foi muito gabado na cerimónia de posse.


© Fotografia de Pedro Serrano, 2003.

13 abril 2013

TIGRES MARÍTIMOS


Na prateleira de cimento e gesso, apoiada nos poiais do lado exterior da janela aberta, havia uma floreira rectangular onde crescia, numa profusão não regrada pela meticulosidade de um jardineiro, um tufo de chorões; um renque daquelas plantas de folha carnuda que se encontram nos taludes que levam à praia e ajudam a tornar as dunas sedentárias.
Ele estava sentado e olhava pela janela, pois uma premonição de movimento parecia estremecer as folhas de onde, alguns momentos depois, começaram a rastejar uns seres que conservavam o formato das folhas mas as iam substituindo, evoluindo do quente verde vegetal para um acinzentado de animal de sangue frio. Mas, mesmo antes de atingirem o peitoril e correrem o risco de o inquietar, eis que aquelas lagartas coriáceas, uma por uma mas sem excepção, se volviam em pequeninos tigres que ascendiam no céu azul da manhã, tremeluzindo como fumo, e se volatilizavam num ondulado fulvo com riscas negras.
Ele nem queria acreditar na sequência de metamorfoses que os seus olhos testemunhavam e levantou-se a correr, em busca da máquina fotográfica; conseguindo, não muito antes de o fenómeno se desvanecer, disparar a máquina sobre uma nova fornada de tigres flutuantes, comprovando na ampliação que as lentes proporcionavam que eram mesmo minúsculos tigres, vivos, perfeitos, a quem se distinguia até o pormenor de terem todos bigodes brancos. Chamou a mulher, apontou os chorões, atabalhoado explicou o que se passava, mas tudo quanto ela conseguiu testemunhar foi umas, escassas, folhas carnudas dos chorões a transformarem-se em monótonas lagartas acinzentadas. Passou-lhe a máquina para as mãos, esperançoso que algo tivesse ficado gravado na memória fotográfica, mas admitindo que pudesse nada ter restado, uma vez que ectoplasmas e efeitos de sonho são entidades fugidias e pouco impressionáveis.
“Tens razão”, disse ela com um olho no visor, “está aqui uma fileira de tigrinhos, todos alinhados! Tão fofos, olha só: tão pequeninos mas já com bigodes brancos...” 

Fotografias: (1) Chorão (Carpobrotus edulis), © Blog Verde; (2) © Nazareth Dávila.

04 abril 2013

A MENINA E A GALINHA


Havia uma escadaria de degraus largos e baixos, talhados em granito, e uma balaustrada onde os construtores não tinham poupado a mesma pedra, do mesmo cinzento manchado por cicatrizes esverdinhadas de líquen. Lá em cima, o patamar deitava para um terraço com vista de água.
A menina calçava sapatos de mulher e trepava os degraus pelo lado de dentro da escada, buscando a proximidade da parede da casa. Deveria andar pelos três anos, o cabelo, louro e às ondas e apartado ao meio numa risca, roçava-lhe apenas o pescoço. Numa das mãos segurava, mais pendurado do que estrangulado, o pescoço descarnado de uma galinha muito velha. A galinha fazia débeis movimentos com o bico, como se procurasse o ar, os olhos inexpressivos desinteressados do futuro ou do lugar para onde se dirigiam. Quanto ao resto do corpo, as patas mal afloravam os degraus e era a menina que, graças à sua amizade, garantia que o bicho ainda progredisse em vez de jazer abandonado à sorte dos piolhos e da impiedade dos ratos, pois tal seria o destino se abandonado à sua decrepitude.
A menina continuava a subir os degraus, lutando contra a altura dos degraus, o movediço dos sapatos, contra aquele peso suspenso do bracito; os olhos fitando em frente, determinados, sem brilho de sorriso ou de infância, no limiar do zangado pela consciência de uma tarefa ainda não cumprida.
Uns degraus mais acima, encostado ao rebordo do balaústre, eu via-a aproximar-se, via-a agora passar em grande plano, lamentava não ter ali a máquina fotográfica e a fraca definição da câmara do telemóvel, no bolso de trás das minha calças.
© Fotografia de Pedro Serrano, Março 2013.