Com raras excepções, são geralmente
excelentes os documentários da National
Geographic sobre vida animal. No outro dia, na RTP2 (entre as 9 e as 10 da
noite, que é quando passam) vi um sobre amizade entre animais de diferentes espécies.
De espanto em espanto, a minha
perspectiva do que estava a assistir foi resvalando para um estado entre o
emocionado e o maravilhado com o que as imagens pareciam significar. Mas
deixem, antes de me dedicar às generalizações, contar um pouco do que vi. Havia
um pouco de tudo: Havia o macaco-gibão, de cor branca, braços desproporcionados
e pêlo comprido de boneco de peluche, que era meio autista e não conseguia dar-se
nem ser aceite por macacos da mesma espécie. Então, um dia, esse solitário descobriu
que se comprazia na companhia de macacos-capuchinho, uns bichitos bastante mais
pequenos, de cor, hábitos e espécie diferente e que olhavam o intruso algo
espantados, mas o toleravam na proximidade dos ramos onde saltaricavam.
“Mas isso sempre era entre macacos,
não é lá muito esquisito”, dirão os ouvintes, “afinal são todos meios primos...
até nossos!”
OK, e o que me dizem a uma amizade
entre uma tartaruga e um ganso? Era uma tartaruga grande que, como quem se
desloca à força de remos, se movia pesadamente em terra, e um ganso, vá lá
saber-se o porquê, escolheu-a como companheira inseparável, seguindo-a para
todo o lado e atacando, num proteccionismo histérico de mãe, qualquer outro
ganso ou tartaruga que se aproximasse do réptil enquanto este se alimentava ou
espadanava nas águas. Seguiu-se a história do chacal e do leão, predadores
incompatíveis, criados juntos desde a infância num centro para animais
abandonados. No começo houve uma altura em que ambos tinham porte semelhante,
pois todos os bebés, mesmo os órfãos, são pequenos e fofos. Mas depois o leão desabrochou
numa bisarma e, à beira dele, o chacal não era mais do que um animalzeco
fanhoso e despenteado, de dentuça arreganhada e expressão desdenhosa, que o
outro destruiria numa única sapatada. Mas era vê-los brincando em companhia, o
chacal em provocação permanente do leão, e este abocanhando-o com ternura e
controlando na perfeição a consciência das mandíbulas ou a energia das patadas.
Agora o cenário era uma quinta,
vizinha de uma floresta, e os donos da quinta, lavradores sensíveis, eram-no
também de uma cadela grand danois,
quase negra. E eis que, surgida do mistério do bosque, aparece uma manhã no
quintal uma pequena gazela cor de mel, provavelmente órfã, que se abandona à
cadela como se esta pudesse ser a mãe perdida, tentando até mamar nas tetas da
surpreendida cadela! Cadela que, como é vulgar nos cães, encarou toda aquela
carência com serena naturalidade e tratou de educar a trêmula bichinha nos sólidos
princípios que qualquer cão bem-educado deve seguir. O tempo passou, a gazela
cresceu e o apelo da floresta, ali ao lado, tornou-se poderoso. A gazela
desapareceu, a cadela passou a olhar com renovada atenção para o lado das
árvores, de vez em quando dava uma volta pelo bosque. Até que um dia,
perfeitamente adulta e já mãe, a gazela reapareceu para visitar a antiga casa e
rever a mãe adoptiva. É de uma beleza que não necessita legenda, vê-las ambas
em marradinhas ternas, em entrelaçar de pescoços ou, numa felicidade volvida
movimento, em correrias sobre a erva verde do terreiro nas traseiras da
floresta.
No entanto, a sequência de que mais gostei
foi a do cavalo e do bode. O cavalo andava nos 40 anos, o que é muita idade
para um animal destes, pode considerar-se que era um cavalo centenário. E as
marcas do tempo tinham-se feito sentir: artroses nas articulações, uma catarata
num olho, depois no outro e eis o animal sem autonomia, inclusive a de procurar
alimento e se alimentar. Consternados, os donos chegaram à conclusão que não
restava outra solução se não a de abaterem o ancião. E eis que o milagre desce
e se revela num personagem da própria família que vivia na propriedade: por lá coabitava
também um velho bode que, de súbito, pareceu dar-se conta do drama e passou a considerar
como sua a função de tomar conta do diminuído companheiro. O filme ilustra bem
a situação: todas as manhãs o bode vai ter com o cavalo e, mantendo-se sempre à
sua frente e a uma distância que o outro possa sentir, controlando com um olho
se o outro o segue convenientemente, condu-lo aos locais de melhor pasto, onde,
pacientemente, fica à espera que o amigo se alimente. Em seguida leva-o a
passear por ambientes adequados à condição do cavalo, orienta-o por terrenos
pouco acidentados, mostra-lhe clareiras onde o sol banha a terra de um calor
benéfico a quem já está na idade de resguardar pernas com mantas... E, ao fim
do dia, condu-lo de volta ao estábulo. Este procedimento manteve-se,
diariamente, por vários anos, até que um dia o cavalo morreu naturalmente, de
velhice.
“E o bode?”, sinto todos vocês questionar.
Pois o bode passou a comportar-se como sempre se comporta um bode: voltou à
vida na quinta, nunca mais percorrendo os caminhos em que pastoreara o cavalo,
enfim, agindo como se nunca tivesse existido um cavalo cego que não conseguia
alimentar-se sozinho.
Bem, agora que a história está contada, cada um que
pense o que quiser disto tudo, mas não me venham mais dizer que sentimentos ou
estados como a amizade, a compaixão ou a consciência do mundo que nos rodeia é
exclusivo da raça humana. O que talvez seja exclusivo da raça humana, como
parece apontar o comportamento final do bode velhote, é o sentimentalismo
piegas, lá no fundo mais centrado em nós do que no interesse pelos outros.
© Fotografias: National Geographic.
Lindo! Também me emocionei, só de ler, pois não conhecia o documentário. E concordo com as suas conclusões finais. Plenamente!
ResponderEliminarBj
Ana Cristina
@ Ana Cristina, Obrigado pelo comentário. Não sei se o documentário anda pela net, mas é possível pois tirei as fotos de lá: vale mesmo a pena ver! Beijo
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