30 julho 2022

É CONSIGO, ISSO DO FRUTO DO SEU VENTRE


Cara leitora, se é candidata a grávida aceite um conselho: evite os signos zodiacais de Caranguejo, Leão e Virgem para horóscopo do seu futuro bebé, isto é fuja, como o Diabo da cruz, dos meses de Verão para término do feliz desenlace! De outro modo irá ter de andar a consultar o Portal do SNS (cada vez mais parecido com o Borda d'Água) para identificar quais as maternidades abertas ou fechadas no dia do parto, antes e após a meia-noite, ao fim de semana; irá, igualmente, ter de consultar os portais da Administração Interna para aferir se alguma das estradas por onde terá de percorrer dezenas ou centenas de quilómetros irá estar cortada por incêndios; irá ter de ir ao site do INEM procurar quantas ambulâncias estão como as esquadras móveis da polícia do Porto, isto é escangalhadas. Cara leitora, evite os meses de Verão para ter o seu, outrora, feliz acontecimento, transformado em angustiante acontecimento desde que o Serviço Nacional de Saúde ser transformou no Serviço Nacional da Inacessibilidade. 

E apesar de uma gravidez não ser doença siga os conselhos do Presidente da República e da Ministra da Saúde, que aconselham a não adoecer no Verão. E, se for teimosa e insistir em parir o fruto do seu ventre, prepare-se a acusação de ser a culpada pela situação e siga, ao menos, os conselhos da Directora-Geral de Saúde: não inclua bacalhau à Braz na sua ração de combate e enfie na mochila uma camisa de dormir e um garrafão de água para as horas que irá esperar em todos os serviços de urgência por onde terá de penar até que o seu bebé possa, finalmente, ver a luz do dia em relativa segurança.

Ao arrepio da conversa da treta sobre incentivos à natalidade, em cada um dos últimos dois meses morreu um quase-bebé por falta de atendimento nos hospitais onde as mães recorreram e era suposto terem recorrido: o primeiro, em Junho, nas Caldas da Rainha e, já esta semana, o segundo no Hospital de Santarém. A história desta segunda morte é macabra e evidencia negligência a toda a prova da rede dos Serviços de Saúde do Estado. Uma grávida de 41 anos (idade, por si só, condicionante de alto risco para gravidez e parto), seguida na gravidez por médico particular, estando em fim de tempo para parir apresentou-se no hospital da área de residência (Abrantes) com uma carta do médico assistente, resumindo a sua situação clínica e aconselhando que aí passasse a ser enquadrada nas poucas horas que faltavam para o parto e, depois, no parto em si. Uma obstetra, escudando-se na situação de a urgência de Obstetrícia estar "em estando de contingência" (essa fantasia trapaceira inventada pela Ministra da Saúde), atendeu-a com maus modos num corredor, em pé, negando-se a ler a carta do colega, por esta vir da "Privada" e recusando-se a tomar conta da situação. A grávida que fosse, pelos seus próprios meios, bater a outra porta... Aflita, a senhora foi bater à porta que lhe indicaram: Santarém, a 100 km de casa! Mas era tarde quando aí chegou e a criança já estava morta no útero, tendo a já martirizada mãe sofrido o horror de dar à luz um ser de imediato destinado ao cemitério. Desumano e evitável. 

Quando o caso veio a lume, o hospital de Abrantes fez o que geralmente fazem os serviços públicos, que é negar tudo e acusar a vítima de ser a culpada pela situação. O hospital de Abrantes apressou-se a dizer que não havia "registo" de essa senhora lá ter ido e, paralelamente, que (agora já segundo os seus "registos") tal pessoa não tinha tido a gravidez seguida nesse hospital, implicando sub-repticiamente a não-obrigação em receber a parturiente, como se houvesse um qualquer sistema de fidelização, tipo assinatura de telemóvel, e uma grávida tivesse de ser seguida em local X para, depois, ser atendida no parto nesse local X. Bela leitura da Constituição e do muito propalado Direito à Saúde! 

Durante um dia ou dois, talvez mais, o Hospital de Abrantes continuou a insistir nessa de "não haver registo" como se pudesse haver registo formal de uma situação que é despachada, em maus-modos, numa conversa de corredor. Que mais seria necessário para assumirem que a senhora procurou os seus serviços? Visionar as gravações do sistema de videovigilância do hospital, como faz a polícia com os criminosos? E que raio de Obstetra é essa que, estando ao serviço e tendo à sua frente uma grávida de risco (pela idade) e em fim de tempo, se recusa a ler a comunicação de um colega sobre o caso e corre a parturiente dali para fora sem sequer avaliar o caso? Que juramento profissional fez ela, quando se comprometeu, como médica, a não negar assistência a ninguém que lho peça e o necessite? A situação, que tem vindo a ver a luz do sol à medida que os implicados são apertados pela comunicação social, compagina, no mínimo, deficiente ética profissional e negação de assistência médica dentro de um estabelecimento oficial prestador de cuidados de saúde.

E de Abrantes para cima? Lacerda Sales (secretário de estado da Saúde) veio, sem compromisso e com presteza, anunciar dois inquéritos, como quem reforça o nó num embrulho. Dois dias antes, na TV, o mesmo senhor tinha anunciado que tudo estava sob controlo no mundo da Obstetrícia e que o novo funcionamento em rede dos serviços iria garantir que ninguém ficasse sem os cuidados, rebéubéu pardais sem ninho. Mas e a patroa dele, que aparenta ter desaparecido do mapa e empurra Lacerda, que sempre evidencia maior poder anestesiante, para a frente das câmaras? Bem, uns dias antes desta tristeza desatada, quando os jornalistas a questionaram sobre o novo agravamento do estado das urgências e do atendimento obstétrico, afirmou rispidamente que o facto não era nenhuma novidade para ela e que já tinha, até, avisado que isto ia acontecer! Temido ficou encravada no pensamento pandémico, ao que parece, e esta parece uma velha frase rebuscada aos tempos do Covid19 e em que ela gostava de prometer algo como "ainda vai piorar antes de melhorar". Enquanto aguarda um director executivo para o SNS que passe a assumir todas estas chatices, Marta comporta-se em modo 'maioria absoluta' - embora tenha responsabilidade por tudo isto, na verdade não tem que sentir responsabilidade por nada. Prefere viver na recordação doce do tanto de bom que se fez e não se afligir muito a pensar neste presente em que já falham as urgências de pediatria e as urgências em geral, não apenas as de Obstetrícia. E se, dantes, tudo isto era apenas mazela do pobre interior do país, a mancha alastra já aos grandes hospitais centrais da capital. É mesmo caso para se dizer: que seca extrema!    

01 julho 2022

LE PLAT PAYS


      De ti

       De quem presenças várias poderia recordar

       Ficou-me deveras e sem que se explique

       A travessia de uma rua...

       Éramos três os que caminhavam,

       Alinhados nos passos e na oportunidade

       E terias chegado há pouco à cidade

       Era sempre então essa 

       A sensação de estar ao teu lado

       A de que acabaras de chegar e contigo novidades

       Embora as novidades pudessem ser somente tu

       Apenas isso, mas que só por si nos animava

       Animava a própria cidade e os olhos

       De a vermos, vestirmos, desbravarmos

       Como se de igual modo acabássemos de desembarcar

       Nas suas ruas, avenidas, vielas e janelas.

       No atravessar que os três aguardava

       Tu, eu e mais alguém que não descortino,

       Excepto por nenhum de nós ter ainda vinte anos,

       Nessa travessia nos vamos agora

       Como se uma maré concedesse trégua vasa

       E o tráfico se empatasse num espanto raso

       Eu, tu e não sei quem outro

       Agora já na outra margem, sob a janela larga

       Idealizada como um tríptico para que um dia

       Pudesse aspirar a tornar-se o par de um trio,

       Espreitando a chegada 

       Como o cais de um porto seguro.

       Os três boiando num aproximadamente sorriso 

       Por ser manhã, por termos chegado ou somente 

       Porque é diverso o como se vê deste lado da rua

       Cabeças atentas, mãos nos bolsos, uma madeixa brilhante

       Afastada à testa e logo voltada a tombar

       O quase sorriso surripiando-se à nossa gravitas comum

       Ascendendo dos trilhos amarelos dos eléctricos até ao

       Firmamento, por entre tropeços, telhados e nuvens esfuziadas

       Na alegria leve que só em nós não se demorava, pois 

       A vida é breve, grave, assim achamos e nada sabemos

       Sob todo esse peso do mundo

       No chilreio citadino do findar dessa manhã

       Onde um dos três não quer ser o primeiro a dizer: 

       E agora...? 

       Agora, 

       Deixam cair na caixa de esmolas da minha ignorância,

       Garantem-me que foste de viagem pelas repetentes

       Quelhas, ruas e avenidas do esquecimento

       Lugar cendrado e triste onde chove sempre um pouco,

       Aí andarias, sem dares notícia ou alguém que as recolha.

       Talvez então, pela noitinha ou num final de manhã

       Nos encontremos por aí numa rua ou numa ombreira

       (plof do guarda-chuva que enrolado me acompanha,

       bicando o chão como se picasse folhas-mortas)

       E te ofereça resguardo

       Sob a repentina copa da cor madura do melão

       Visto que ambos seguimos na mesma direcção

 



 (a Mané Valente, in memoriam)

       Imagem: pintura de Felix Casorati.

       Fotografia, da esquerda para a direita: Manel e Mané, circa 1972, Porto, fotógrafo desconhecido.