E apesar de uma gravidez não ser doença siga os conselhos do Presidente da República e da Ministra da Saúde, que aconselham a não adoecer no Verão. E, se for teimosa e insistir em parir o fruto do seu ventre, prepare-se a acusação de ser a culpada pela situação e siga, ao menos, os conselhos da Directora-Geral de Saúde: não inclua bacalhau à Braz na sua ração de combate e enfie na mochila uma camisa de dormir e um garrafão de água para as horas que irá esperar em todos os serviços de urgência por onde terá de penar até que o seu bebé possa, finalmente, ver a luz do dia em relativa segurança.
Ao arrepio da conversa da treta sobre incentivos à natalidade, em cada um dos últimos dois meses morreu um quase-bebé por falta de atendimento nos hospitais onde as mães recorreram e era suposto terem recorrido: o primeiro, em Junho, nas Caldas da Rainha e, já esta semana, o segundo no Hospital de Santarém. A história desta segunda morte é macabra e evidencia negligência a toda a prova da rede dos Serviços de Saúde do Estado. Uma grávida de 41 anos (idade, por si só, condicionante de alto risco para gravidez e parto), seguida na gravidez por médico particular, estando em fim de tempo para parir apresentou-se no hospital da área de residência (Abrantes) com uma carta do médico assistente, resumindo a sua situação clínica e aconselhando que aí passasse a ser enquadrada nas poucas horas que faltavam para o parto e, depois, no parto em si. Uma obstetra, escudando-se na situação de a urgência de Obstetrícia estar "em estando de contingência" (essa fantasia trapaceira inventada pela Ministra da Saúde), atendeu-a com maus modos num corredor, em pé, negando-se a ler a carta do colega, por esta vir da "Privada" e recusando-se a tomar conta da situação. A grávida que fosse, pelos seus próprios meios, bater a outra porta... Aflita, a senhora foi bater à porta que lhe indicaram: Santarém, a 100 km de casa! Mas era tarde quando aí chegou e a criança já estava morta no útero, tendo a já martirizada mãe sofrido o horror de dar à luz um ser de imediato destinado ao cemitério. Desumano e evitável.
Quando o caso veio a lume, o hospital de Abrantes fez o que geralmente fazem os serviços públicos, que é negar tudo e acusar a vítima de ser a culpada pela situação. O hospital de Abrantes apressou-se a dizer que não havia "registo" de essa senhora lá ter ido e, paralelamente, que (agora já segundo os seus "registos") tal pessoa não tinha tido a gravidez seguida nesse hospital, implicando sub-repticiamente a não-obrigação em receber a parturiente, como se houvesse um qualquer sistema de fidelização, tipo assinatura de telemóvel, e uma grávida tivesse de ser seguida em local X para, depois, ser atendida no parto nesse local X. Bela leitura da Constituição e do muito propalado Direito à Saúde!
Durante um dia ou dois, talvez mais, o Hospital de Abrantes continuou a insistir nessa de "não haver registo" como se pudesse haver registo formal de uma situação que é despachada, em maus-modos, numa conversa de corredor. Que mais seria necessário para assumirem que a senhora procurou os seus serviços? Visionar as gravações do sistema de videovigilância do hospital, como faz a polícia com os criminosos? E que raio de Obstetra é essa que, estando ao serviço e tendo à sua frente uma grávida de risco (pela idade) e em fim de tempo, se recusa a ler a comunicação de um colega sobre o caso e corre a parturiente dali para fora sem sequer avaliar o caso? Que juramento profissional fez ela, quando se comprometeu, como médica, a não negar assistência a ninguém que lho peça e o necessite? A situação, que tem vindo a ver a luz do sol à medida que os implicados são apertados pela comunicação social, compagina, no mínimo, deficiente ética profissional e negação de assistência médica dentro de um estabelecimento oficial prestador de cuidados de saúde.
E de Abrantes para cima? Lacerda Sales (secretário de estado da Saúde) veio, sem compromisso e com presteza, anunciar dois inquéritos, como quem reforça o nó num embrulho. Dois dias antes, na TV, o mesmo senhor tinha anunciado que tudo estava sob controlo no mundo da Obstetrícia e que o novo funcionamento em rede dos serviços iria garantir que ninguém ficasse sem os cuidados, rebéubéu pardais sem ninho. Mas e a patroa dele, que aparenta ter desaparecido do mapa e empurra Lacerda, que sempre evidencia maior poder anestesiante, para a frente das câmaras? Bem, uns dias antes desta tristeza desatada, quando os jornalistas a questionaram sobre o novo agravamento do estado das urgências e do atendimento obstétrico, afirmou rispidamente que o facto não era nenhuma novidade para ela e que já tinha, até, avisado que isto ia acontecer! Temido ficou encravada no pensamento pandémico, ao que parece, e esta parece uma velha frase rebuscada aos tempos do Covid19 e em que ela gostava de prometer algo como "ainda vai piorar antes de melhorar". Enquanto aguarda um director executivo para o SNS que passe a assumir todas estas chatices, Marta comporta-se em modo 'maioria absoluta' - embora tenha responsabilidade por tudo isto, na verdade não tem que sentir responsabilidade por nada. Prefere viver na recordação doce do tanto de bom que se fez e não se afligir muito a pensar neste presente em que já falham as urgências de pediatria e as urgências em geral, não apenas as de Obstetrícia. E se, dantes, tudo isto era apenas mazela do pobre interior do país, a mancha alastra já aos grandes hospitais centrais da capital. É mesmo caso para se dizer: que seca extrema!
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