28 novembro 2013

DOCE LOTARIA

Enquanto ia deitando um olho ao nitidíssimo recorte das Berlengas, alinhadas no horizonte como um puro prolongamento da península de Peniche, li no jornal que a Imperial vai relançar as máquinas de furos Regina.
Quando essas máquinas me faziam tremer interiormente com todos os tiques do jogador dependente, tinha menos de uma dúzia de anos de idade e a Imperial respondia pelo mundo dos chocolates foleiros, sendo a Regina o crème de la crème da produção chocolateira nacional. Quem não se lembra da enjoativíssima tablete com sabor a ananás? Ou do Coma Com Pão, um chocolate recheado com uvas passas e a que ninguém passava sequer pela cabeça acompanhar de pão ou broa? Ou as maravilhosas barras, embaladas em orientais acabamentos vermelho e ouro, de extremidades cortadas num ângulo inesperado?
Bem, os tempos mudaram, a Regina faliu e foi comprada pela Imperial que se sofisticou e resolveu recuperar as imaginativas variedades da velha Regina.
E vão reaparecer, com design similar, as máquinas de furos! Que milagre! Tenho a certeza que os miúdos de hoje vão ficar tão fascinados  como os de antigamente, pois o princípio encerra uma tentação que ultrapassa os tempos e o entendimento:
Há uma placa de cartolina semeada de bolinhas e a cada bolinha corresponde um número e a cada número corresponde sempre um chocolate, só que a gente não sabe qual será... Então, há uma espécie de chave de fendas (presa à placa numerado por um cordão) com que o trémulo jogador fura um dos círculos que ainda não estão furados, esperando que lhe saia o seu chocolate preferido ou, sonho dos sonhos, o primeiro prémio: uma caixa de bombons que vale muito mais do que o preço que se pagou para ter o direito a um fura!
Ao apunhalar-se o círculo, uma bolinha de plástico numerada (à semelhança do que acontece nos jogos da Santa Casa que a Serenella Andrade apresenta na TV há uns 250 anos), cai num pequeno corredor envidraçado, descodificando o que nos coube em sorte.


É óbvio, o jogador experiente, tenha 8 ou 80 anos, sabe-o de cor e salteado, que a maior parte dos chocolates por trás dos números são tabletes modestas, daquelas magrinhas em que os bordos são mais altos do que o centro... Mas que importa? Enquanto a gente vasa na língua o doce sabor, sente o consolo que é de esperar num chocolate e vai sonhando que, quando voltar a ter dinheiro para um novo fura, lhe poderá então sair o grande prémio, pois faz parte do contrato esse primeiro prémio poder saltar-nos para os braços a qualquer momento, mesmo antes da última bolinha ter resvalado no mostrador da sorte.

24 novembro 2013

21 novembro 2013

EMPREENDEDORISMO

A fotografia é, propositadamente, tirada de longe e o homem vê-se mal. É que eu não queria, de jeito algum, dar-lhe cabo do negócio ao cair no risco de identificá-lo, não vá algum burocrata zeloso entrar aqui pelo blog dentro e classificar a actividade como ilegal ou, pior ainda, passível de ser colectada pela Autoridade Tributária.
Por razões gémeas não vou identificar o local onde isto se passou, a não ser confessar que é um pequeno, mas muito movimentado, parque de estacionamento de Lisboa.
Quanto ao personagem central deste texto, é um homem grisalho, mais magro do que gordo e, por agora, geralmente trajando camisa aos quadrados sobre t-shirt, que o tempo vai ficando frio e ele passa o santo dia ao ar livre a ajudar na complexa e delicada tarefa de estacionar automóveis em zona com parquímetro.
Dantes, pouco mais de um ano atrás, as máquinas de sacar moedas ainda não se tinham multiplicado até àquela zona, mas, como sabemos, o mundo é um local tendencialmente imperfeito. Nesses dias de antanho, bastava recolher as moedas que os automobilistas do costume lhe iam despejando na mão e eis que, sem aviso, lhe espetam ali séria concorrência, mudamente estribada em posturas municipais e vigilantes fardados! Era adaptar-se ou morrer ou, talvez, emigrar, como aconselhou o outro. Mas, caralhos nos fodam, para onde vai emigrar um arrumador de meia-idade, sem mais skills do que gestos e lábia?
Ah, mas o homem deu a volta por cima, conseguiu até, em passe duplo, eliminar a concorrência da gajada que, com a crise a espremer todos os ratos para fora da toca, começou a surgir por ali com a maior das latas. Passou a ostentar, pendurado ao pescoço num daqueles identificadores de plástico que usam os participantes dos congressos, uma etiqueta que diz EMEL, provavelmente recortada a um dos envelopes que os fiscais deixam no para-brisas de quem multam.
Quando a gente chegava e, confuso, tentava optar entre um dos vários arrumadores daquele nico de estacionamento, ele agitava o identificador aos nossos olhos e avisava-nos, alto e bom som:
“Eh, sou o único aqui que tem acordo com a EMEL...”
E, tendo o público isso em mente, aproximava-se do condutor que se dirigia para o parcómetro e confidenciava:
“Dr., não precisa maçar-se...” E tentava especificar a demora: “Até que hora pensa estar por aqui...?”
“A manhã inteira, amigo”, informava-o eu, informavam-no outros clientes tão rendidos quanto eu ao seu tom educado e prestável, irradiando confiança, “pelo menos umas três horas...”
“Basta deixar 50 cêntimos”, transmitia em voz acautelada, “eu vou gerindo isto...”
E assim era; eficiência total. Ao chegar ao carro ao fim da manhã, algo apreensivo de o homem ter zarpado ou poder encontrar no limpa-para-brisas o temido envelope com a multa, encontrava, ao invés, um ticket de estacionamento entalado entre a borracha e o vidro, às vezes habilmente encravado no fecho da porta.
Hoje de manhã, saía eu do carro, ele aproximou-se, pediu com delicadeza:
“Dr., importa-se de deixar uma frincha na janela do seu lado?”
Quando olhei para ele num olhar interrogado, explicou-se:
“Os gajos já não aceitam o tiqué no exterior, agora tem de estar dentro do carro, senão multam!”
Como equipamento para cumprir a nova exigência, mostrou-me uma pequena cana de ponta bifurcada que lhe surgiu nas mãos como um milagre e ali estivemos uns curtos segundos a acertar o intervalo no vidro necessário a que pudesse cumprir a sua função com o zelo a que sempre me habituou.
“Hoje devo demorar só umas duas horas...”, informei-o, passando-lhe uma moeda de dois euros, pois não sei se voltarei ali antes do Natal.
“Não há azar, Dr., pode ir tranquilo...”
Fui tranquilo, regressei eram 10:50 e, ao chegar ao carro, vi um bilhete de estacionamento pousado sobre o tablier, rigorosamente alinhado e com a hora limite visível como manda a lei: 11:35.
Pus o motor a trabalhar, articulava a marcha-atrás, quando ouvi bater suavemente no vidro. Era ele, e pedia com cortesia:
“O Dr. importa-se que eu fique com o tiqué ou ainda vai precisar dele...?”
Estendi-lhe o papelito ainda palpitante e cada um se fez à vida.
 © Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Novembro 2013.


12 novembro 2013

MEIO DIA E MEIA

Ao Domingo, a baixa do Funchal é sítio deserto e, como em ocasião anterior esfomeadamente constatara, praticamente impossível encontrar uma porta aberta, seja restaurante ou café, onde se trinque qualquer coisa.
Imbuído dessa insegurança saí do hotel e olhei em volta como um náufrago tentando vislumbrar fumo no meio do oceano. E eis que, logo do lado de lá da rua, o meu olhar embateu num toldo semi-descido, numa montra com escritos, num par de cadeiras esplanadas e anunciadoras de boa nova!
Aproximei-me cautelosamente e li os dizeres sarrabiscados a giz na lousa-menu do Bar Ponte Nova, que assim se chamava o estabelecimento. O interior, em si, tinha um ar rasca, mas havia sandes, tostas, hambúrgueres, omeletas, que era tudo o que bastava para um pequeno-almoço tardio.
Entrei, sentei-me a um canto e pedi ao homem que parecia ser o dono (um tipo moreno, cabelo rapado, tatuagens nos bíceps e ar compatível com quem está em liberdade condicional) uma tosta mista e uma Brisa de maçã, um refrigerante madeirense que faz recordar o nosso saudoso Carbo-Sidral.
Enquanto aguardava fui observando a escassa clientela, a qual parecia uma pincelada das que Georges Simenon, o escritor francês, usa para esboçar o ambiente de um café bas-fond de província.
Na mesa vizinha da minha estava sentado um camarada que pelo porte, pelo louro do cabelo e pelo cachaço taurino, presumi ser russo, ucraniano ou dessas bandas. Encontrava-se entretido num aparelhito que se assemelhava a um protótipo de ipad de design e produção chinesa, mais uma imitação de loja dos 300 do que propriamente um aparelho que funcionasse. De dez em dez minutos o intimidante proprietário aproximava-se da mesa e, sem pedido expresso, despejava-lhe num copo de shot uma mistela verde que lembrava absinto e que o outro tragava de uma só vez, produzindo um sonoro estalido de amarga satisfação.
Perto do russo, à distância de uma mesa, sentava-se, roendo sabugos, uma rapariga, magra como um cão, muito decotada e cujos olhos se tornavam estrábicos sempre que a sua atenção era solicitada. O que era o caso, pois o russo interpelava-a com frequência para lhe estender o brinquedo de plástico onde, pela explicação, iam desfilando fotografias da pátria distante, da mãe, do filho pequeno, da ex-mulher e da irmã, que ele destacava como sendo a vedeta da família:
“Pode ser uma filha da puta”, dizia num português torcido de consoantes, “mas sabe cantar! Num só fim de semana, a actuar em casamentos,  pode chegar a tirar cinco, seis, às vezes dez mil euros...”
E engolia mais um copo da misteriosa mistura verde a que eu tentava decifrar o nome sem sucesso, pois a garrafa, uma dessas que tem o gargalo artilhado com um tubinho de metal dispensador das doses, não parecia ter rótulo ou identificação.
A rapariga magricela entortava os olhos, inclinava-se mostrando o rego, acenava com a cabeça e, sempre que o russo fazia ouvir no aparelho uma fanhosa canção da terra, levantava as mangas e esboçava com os dedos roídos os gestos do bailinho da Madeira. O russo, sem mover o corpo atolado na cadeira, corrigia-lhe os movimentos e demonstrava que aquilo se dançava com os braços erguidos, sim, mas com os punhos cerrados, em movimentos lentos e abaulados, não naquele lampejo saltitante de vira!
Durante a hora que por ali permaneci, encantado com a progressão de acontecimentos, mastigando a excelente tosta mista que o aberto sorriso de dentes afastados do dono pousara na minha mesa, especulei sobre a profissão ou estatuto da rapariga escanzelada. Trazia a tiracolo um miúdo dos seus seis anos que, imitando a mãe, cirandava com à vontade entre as mesas, demorando-se a conversar com os clientes e, amiúde, saía a porta até às cadeiras sem mesa encostadas à fachada do bar, pasmando para a mãe que baforava mais um cigarro em companhia.
Tomava eu o meu descafeinado, e o russo o seu quarto ou quinto shot esverdeado, quando ela, regressada da rua, se debruçou com gantileza a uma mesa onde um recém-chegado, vítima evidente de AVC pelo modo como arrastava a perna e pendurava um braço, bebia pausadamente o seu meio copo de whisky.
“Sou o único que não estou a beber álcool”, pensei, quase entristecido no meu isolamento.
Ora quando o simpático dono do bar me veio soletrar a conta, aproveitei e perguntei que bebida tão popular era aquela, se seria absinto...
“Não”, respondeu com um iluminado sorriso, “é aguardente com funcho, uma receita nossa.” E, hospitaleiro, ofereceu: “quer provar um pouquinho?”
Não tive como recusar, apenas coragem para aproximar o indicador do polegar, a suplicar por uma dose mínima. Quando, uns minutos depois, levei o cálice aos lábios, a minha admiração pelo poder de encaixe soviético redobrou: de facto, a beberragem era intragável e só umas saudades muito danadas podiam explicar que a um meio-dia e meia de Domingo um tipo se entretivesse a calafetar-se usando tal pomada!
Disfarçadamente, logo que confirmei que o dono estava fora de vista, verti o recheio do meu copo na garrafa do Brisa de maçã, apropriadamente moldada em vidro verde-escuro.Desconfio que, na mesa esquinada à minha, o velhote mirrado de boné de basebol vermelho, bigode descaído e olhinhos de babuíno afundados numa cabeça que parecia emprestada de um museu etnográfico, deu conta da minha manobra de decantação. Mas deixei o estabelecimento tranquilo, pois até que ele fosse capaz de articular o facto em pensamento entendível pela clientela teria tempo de regressar ao hotel, arrumar as malas, fazer check-out e apanhar o meu avião de regresso ao outro lado do mar.

© Fotografias de Pedro Serrano, Funchal, Novembro 2013.

10 novembro 2013

EM BUSCA DO LUGAR PERDIDO

We are such stuff as dreams are made on and our little life is rounded with a sleep
                       W. Shakespeare, The Tempest

Vou agora falar de sonhos recorrentes, não dos sonhos que qualquer um de nós alimenta como algo que se almeja, mas dos comezinhos que temos quando nos deitamos para dormir. Isto, aviso, não é fácil explicar, pois os atalhos que tenho de percorrer não são os da lógica comum. Sabem como é com os sonhos...
Deixem que me socorra de um paralelismo: em epidemiologia, uma disciplina científica que estuda as doenças e os factores que as determinam, há três dimensões que é obrigatório considerar na apreciação de qualquer acontecimento – pessoa, tempo, e lugar.
Nos sonhos, as pessoas estão presentes como noutra qualquer dimensão real, embora possa acontecer que os mortos convivam, lado a lado, com os vivos ou algum vivente que tenho a certeza que é X me apareça no corpo de Y. Quanto ao tempo, tão importante e vincado no mundo real, nos sonhos não existe ou, a existir, poderemos atravessá-lo e percorrê-lo em todas as direcções e sentidos.
Resta o lugar e esse sim é a dimensão por excelência dos sonhos, o local onde as coisas sucedem, há sempre um cenário a enquadrar cada sonho.
Não sei se acontece a toda a gente (suponho que sim – está até descrito) mas acontece-me ter sonhos recorrentes, isto é, motivos que se repetem ao longo dos anos, mais ou menos num padrão ou numa sequência idêntica. Lembro o meu pai dizer, irritado por aquela faceta absurda lhe visitar o sono, que, tantos anos mais tarde na sua vida, acordava aflito com o não estar preparado para uma prova de liceu.
Quanto a mim, estou num local chamado Cais dos Bacalhoeiros, um território à beira de água, numa parte baixa e antiga da cidade, e quero ir para um sítio lá no alto, de onde um Hong Kong sonâmbulo me surgirá em toda a sua dimensão e esplendor, como se fosse a chegada a partir da qual não é preciso procurar mais. Para isso devo atravessar Macau, um Macau que da cidade real só vai buscar emprestado as ruas estreitas, as casas antigas, os labirintos das vielas fundas.
Nesta busca, saberei que estou perto do cume em que se avista Hong Kong quando entrar numa rua onde se alinham diversos restaurantes, chineses como seria de esperar. Uns são de crepes e salgados, outros confeitarias com atraentes bolos enfarinhados em redomas de vidro... Aliás costumo parar num deles, quase sempre o mesmo, a comer e descansar, sempre sozinho, numa mesinha ao lado da fachada para o exterior, posso demorar-me pois sei que já estou próximo e a partir dali o caminho é evidente.
Mas até lá, santo Deus, as voltas e canseiras que me esperam, os becos sem saída permanentes; o recomeçar tudo, pois a rua que percorro a correr, em marcha acelerada ou, às vezes, em voo planado, termina-se sem aviso na porta de uma casa (são sempre velhas casas de madeira, com escadas de madeira nua e janelas com vidraças foscas) que se deixa abrir sem se ter de bater; passando por quartos onde, com frequência, há pessoas a desempenhar a sua vida, gente que não dá conta da minha presença ou me deixa seguir caminho sem me interpelar.

Neste invadir involuntário da vida de desconhecidos, sou assaltado por escrúpulos, desconfianças, receios, e tudo isto me faz perder tempo, sobretudo quando o último quarto não leva a lado nenhum e devo abrir uma janela de guilhotina para escapar dali e ir dar a uma varanda de madeira que me leva a outra janela pela qual penetro até chegar a um pátio que, esse sim, me despeja numa rua desconhecida e, pouco mais à frente, há uma esquina de onde partem duas ruas. E agora, qual devo escolher para chegar à rua dos restaurantes, às cercanias do cimo de onde se avista Hong Kong?
Claro que poderia perguntar a alguém, há gente que se cruza comigo ou está por ali como se apenas por ali estivesse para testemunhar a minha passagem, mas sei, de experiência acumulada, que a emenda pode ser pior que o soneto! A explicação pode ser tão baralhada que de nada me adianta ou, pior, o meu interlocutor vai propor que espere, que o acompanhe a um outro local onde se irá informar para me poder iluminar o caminho e eis-me metido em derivas secundárias que logo se transformam em epopeias e atrasam a minha demanda de chegar ainda hoje a Hong Kong, uma Hong Kong onde não é possível aportar por mar nem sobrevoar por avião.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Praia Areia Branca, 2011; (2) Barcelona, 2012.

02 novembro 2013

SALA 12


Sem alternativa à vista, mudei-me para Sete Rios nos primeiros anos do novo século, é seguro que em 2003 já andava por lá.
Durante toda a década de 90, quando precisava de reunir pessoas em Lisboa para trabalho, recorria às salas que o então Departamento de Recursos Humanos da Saúde (um organismo central do Ministério da Saúde) mantinha alugadas na Avenida António Augusto de Aguiar.
Consistiam essas instalações em três andares num prédio, talvez dos anos cinquenta, concebido para habitação humana. E que obra magnífica: as divisões principais, espaçosas, ensolaradas e viradas a poente, deitavam para a avenida e possuíam uma varanda que atravessava toda a frontaria; os soalhos eram entrançados em tacos de madeira envernizada e as casas de banho, do chão ao tecto, forradas a mármore de um verde profundo... Que luxo deveria ser morar ali, pensava cada vez que entrava aquelas portas, que desperdício o uso, cada vez mais esparso, que o desinteressado Ministério dava àquilo; de  partir o coração  a fotocopiadora topo de gama que entristecia sob camadas de pó... O senhorio devia ser da mesma opinião e no final da segunda metade dos anos 90 emitiu uma ordem de despejo por ausência de utilização das parcelas alugadas. Como prova, apresentou contas de água e luz sem tarifa que se visse e, dizia-se, o vídeo de uma câmara artilhada no prédio em frente.
Como eu era a única entidade que, nesses dias, ainda usava as instalações, acabei por ser quem safei o Ministério de ser corrido de uma renda escandalosamente barata no centro da cidade. Pelo menos cinco ou seis vezes em cada ano, amiúde por períodos de duas ou três semanas, recorria àquelas salas e foi-me fácil elaborar um relatório a afirmar isso mesmo, documento robustecido por um extenso rol de potenciais testemunhas – os colegas que se reuniam comigo mais os médicos internos que ali faziam o seu exame para obtenção do grau de especialista.
O Ministério da Saúde acabou por ganhar a querença e, em recompensa pela minha ajuda no processo, instalou ali um novo serviço, o qual, prontamente, me proibiu o acesso às instalações.
Foi assim que me mudei para Sete Rios nos primeiros anos do século XXI, de cada vez que precisava de desencadear uma reunião em Lisboa. Nestes dez anos, fiquei a conhecer os detalhes de utilização a todas (serão cerca de sete ou oito) as dependências: as amplas salas de formação do piso 3, quando necessitava juntar grandes grupos de pessoas, ou as mais pequenas do piso 4 quando os participantes não ultrapassavam a dezena.
Mas, primeira em toda a linha, a sala que mais usei foi a 12 (agora cognominada de B), um espaço que sendo bastante mais comprido que largo tinha um certo ar de carruagem de comboio. A sala era dotada de uma janela que preenchia toda a parede do fundo e parecia projectá-la no exterior e graças à qual, nos dias claros, o espaço se inundava de sol e fazia refulgir o chão de cortiça.

A gestão de todas aquelas salas do Centro de Saúde de Sete Rios – a mais conhecida unidade de saúde portuguesa, pois não há telejornal ou telenovela que não use a fachada em cada ocasião que é preciso ilustrar um facto relacionado com centros de saúde – está sob a jurisdição funcional da Coordenação do Internato de Medicina Geral e Familiar e, para as usar, só tinha de bater à porta da minha amiga Ricardina Barroso para um acesso nunca negado, acrescentado pelo  bónus de um eficiente apoio de rectaguarda.
“Doutor, se precisar de papel A4, fotocópias, imprimir alguma coisa, é só dizer...” Era como estar em casa.
Ontem, dia 1 de Novembro, usei as salas de Sete Rios pela última vez. Apesar de ter estado uma semana meteorologicamente enfarruscada, a sexta-feira amanheceu solarenga e a sala 12 estava banhada em luz para nos receber. Por ali estive toda a manhã acompanhando a realização da prova de uma jovem médica que dá pelo poético nome de Sara Letras, e que viajara desde o Alentejo natal para o teste de avaliação de um estágio da sua especialização médica.
A prova terminou perto da hora do almoço, a Sara despediu-se e eu fiquei a arrumar os meus pertences. Depois, apaguei as luzes e fui entregar a chave da sala à Laura, que a guardou na caixa vermelha em forma de coração onde conserva as chaves das intensamente usadas salas de formação de Sete Rios.
Uns minutos antes, ao pegar o puxador para fechar a porta sobre mim, olhei o interior da sala 12 por uma derradeira vez. Não propriamente para guardar na memória os seus contornos, dado que os conheço de cor de tantas horas ali passadas, mas mais para esboçar um inorgânico e silencioso agradecimento ao local. Um reconhecimento pelo acolhimento, pelos momentos ali passados, o todo embrulhado numa certa mágoa como nos sucede nas manhãs de partida de algum lugar onde fomos felizes.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Novembro 2013; (2) Junho 2003.