Sem alternativa à vista, mudei-me para
Sete Rios nos primeiros anos do novo século, é seguro que em 2003 já andava por
lá.
Durante toda a década de 90, quando
precisava de reunir pessoas em Lisboa para trabalho, recorria às salas que o
então Departamento de Recursos Humanos da Saúde (um organismo central do
Ministério da Saúde) mantinha alugadas na Avenida António Augusto de Aguiar.
Consistiam essas instalações em três
andares num prédio, talvez dos anos cinquenta, concebido para habitação humana.
E que obra magnífica: as divisões principais, espaçosas, ensolaradas e viradas
a poente, deitavam para a avenida e possuíam uma varanda que atravessava toda a
frontaria; os soalhos eram entrançados em tacos de madeira envernizada e as
casas de banho, do chão ao tecto, forradas a mármore de um verde profundo...
Que luxo deveria ser morar ali, pensava cada vez que entrava aquelas portas,
que desperdício o uso, cada vez mais esparso, que o desinteressado Ministério
dava àquilo; de partir o coração a fotocopiadora topo de gama que entristecia
sob camadas de pó... O senhorio devia ser da mesma opinião e no final da
segunda metade dos anos 90 emitiu uma ordem de despejo por ausência de
utilização das parcelas alugadas. Como prova, apresentou contas de água e luz
sem tarifa que se visse e, dizia-se, o vídeo de uma câmara artilhada no prédio
em frente.
Como eu era a única entidade que,
nesses dias, ainda usava as instalações, acabei por ser quem safei o Ministério
de ser corrido de uma renda escandalosamente barata no centro da cidade. Pelo
menos cinco ou seis vezes em cada ano, amiúde por períodos de duas ou três
semanas, recorria àquelas salas e foi-me fácil elaborar um relatório a afirmar
isso mesmo, documento robustecido por um extenso rol de potenciais testemunhas
– os colegas que se reuniam comigo mais os médicos internos que ali faziam o
seu exame para obtenção do grau de especialista.
O Ministério da Saúde acabou por
ganhar a querença e, em recompensa pela minha ajuda no processo, instalou ali
um novo serviço, o qual, prontamente, me proibiu o acesso às instalações.
Foi assim que me mudei para Sete Rios
nos primeiros anos do século XXI, de cada vez que precisava de desencadear uma
reunião em Lisboa. Nestes dez anos, fiquei a conhecer os detalhes de utilização
a todas (serão cerca de sete ou oito) as dependências: as amplas salas de
formação do piso 3, quando necessitava juntar grandes grupos de pessoas, ou as
mais pequenas do piso 4 quando os participantes não ultrapassavam a dezena.
Mas, primeira em toda a linha, a sala
que mais usei foi a 12 (agora cognominada de B), um espaço que sendo bastante
mais comprido que largo tinha um certo ar de carruagem de comboio. A sala era dotada
de uma janela que preenchia toda a parede do fundo e parecia projectá-la no
exterior e graças à qual, nos dias claros, o espaço se inundava de sol e fazia
refulgir o chão de cortiça.
A gestão de todas aquelas salas do
Centro de Saúde de Sete Rios – a mais conhecida unidade de saúde portuguesa,
pois não há telejornal ou telenovela que não use a fachada em cada ocasião que
é preciso ilustrar um facto relacionado com centros de saúde – está sob a
jurisdição funcional da Coordenação do Internato de Medicina Geral e Familiar e,
para as usar, só tinha de bater à porta da minha amiga Ricardina Barroso para um
acesso nunca negado, acrescentado pelo
bónus de um eficiente apoio de rectaguarda.
“Doutor, se precisar de papel A4,
fotocópias, imprimir alguma coisa, é só dizer...” Era como estar em casa.
Ontem, dia 1 de Novembro, usei as
salas de Sete Rios pela última vez. Apesar de ter estado uma semana
meteorologicamente enfarruscada, a sexta-feira amanheceu solarenga e a sala 12
estava banhada em luz para nos receber. Por ali estive toda a manhã
acompanhando a realização da prova de uma jovem médica que dá pelo poético nome
de Sara Letras, e que viajara desde o Alentejo natal para o teste de avaliação
de um estágio da sua especialização médica.
A prova terminou perto da hora do
almoço, a Sara despediu-se e eu fiquei a arrumar os meus pertences. Depois, apaguei
as luzes e fui entregar a chave da sala à Laura, que a guardou na caixa
vermelha em forma de coração onde conserva as chaves das intensamente usadas
salas de formação de Sete Rios.
Uns minutos antes, ao pegar o puxador
para fechar a porta sobre mim, olhei o interior da sala 12 por uma derradeira
vez. Não propriamente para guardar na memória os seus contornos, dado que os
conheço de cor de tantas horas ali passadas, mas mais para esboçar um
inorgânico e silencioso agradecimento ao local. Um reconhecimento pelo
acolhimento, pelos momentos ali passados, o todo embrulhado numa certa mágoa
como nos sucede nas manhãs de partida de algum lugar onde fomos felizes.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Novembro 2013; (2) Junho 2003.
É. Que bom é termos recordações felizes nestes estranhos tempos de mudança. Pode crer. Bons tempos.
ResponderEliminarBj
Ana Cristina
Muito se aprendeu e se tentou contribuir para que a mudança ocorresse (e se melhorasse).
ResponderEliminarIsso foi muito bom. E vai continuar ....
Bjs
Carolina
@ Ana Cristina e Carolina, Obrigado pelos recados e beijos para as duas.
ResponderEliminarOlá Pedro
ResponderEliminarFico espantada como a descrição literária que fases dos espaços lhes dão vida.
O olhar de despedida sobre a sala 12 renasceu-a! A importância das pequenas coisas como esta sala que até ler o teu texto para mim era inerte.
No que depender de mim a sala 12 estará sempre disponível. Mas sobretudo a tua pessoa e os teus saberes!
Obrigada
Paula
@ Cara Paula, Obrigado pelo comentário: fico contente que a sala 12 passe a estar viva! Abraço
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