We are such stuff as dreams are made on and our little life is rounded with a sleep
W. Shakespeare, The Tempest
Vou agora falar de sonhos recorrentes, não dos sonhos que qualquer um de nós alimenta como algo que se almeja, mas dos comezinhos que temos quando nos deitamos para dormir. Isto, aviso, não é fácil explicar, pois os atalhos que tenho de percorrer não são os da lógica comum. Sabem como é com os sonhos...
W. Shakespeare, The Tempest
Vou agora falar de sonhos recorrentes, não dos sonhos que qualquer um de nós alimenta como algo que se almeja, mas dos comezinhos que temos quando nos deitamos para dormir. Isto, aviso, não é fácil explicar, pois os atalhos que tenho de percorrer não são os da lógica comum. Sabem como é com os sonhos...
Deixem que me socorra de um
paralelismo: em epidemiologia, uma disciplina científica que estuda as doenças
e os factores que as determinam, há três dimensões que é obrigatório considerar
na apreciação de qualquer acontecimento – pessoa, tempo, e lugar.
Nos sonhos, as pessoas estão presentes como noutra qualquer dimensão real, embora
possa acontecer que os mortos convivam, lado a lado, com os vivos ou algum
vivente que tenho a certeza que é X me apareça no corpo de Y. Quanto ao tempo, tão importante
e vincado no mundo real, nos sonhos não existe ou, a existir, poderemos
atravessá-lo e percorrê-lo em todas as direcções e sentidos.
Resta o lugar e esse sim é a dimensão por excelência dos sonhos, o local
onde as coisas sucedem, há sempre um cenário a enquadrar cada sonho.
Não sei se acontece a toda a gente (suponho
que sim – está até descrito) mas acontece-me ter sonhos recorrentes, isto é,
motivos que se repetem ao longo dos anos, mais ou menos num padrão ou numa
sequência idêntica. Lembro o meu pai dizer, irritado por aquela faceta absurda
lhe visitar o sono, que, tantos anos mais tarde na sua vida, acordava aflito
com o não estar preparado para uma prova de liceu.
Quanto a mim, estou num local chamado Cais dos Bacalhoeiros, um território à
beira de água, numa parte baixa e antiga da cidade, e quero ir para um sítio lá
no alto, de onde um Hong Kong sonâmbulo me surgirá em toda a sua dimensão e
esplendor, como se fosse a chegada a partir da qual não é preciso procurar
mais. Para isso devo atravessar Macau, um Macau que da cidade real só vai
buscar emprestado as ruas estreitas, as casas antigas, os labirintos das vielas
fundas.
Nesta busca, saberei que estou perto
do cume em que se avista Hong Kong quando entrar numa rua onde se alinham
diversos restaurantes, chineses como seria de esperar. Uns são de crepes e
salgados, outros confeitarias com atraentes bolos enfarinhados em redomas de
vidro... Aliás costumo parar num deles, quase sempre o mesmo, a comer e
descansar, sempre sozinho, numa mesinha ao lado da fachada para o exterior, posso
demorar-me pois sei que já estou próximo e a partir dali o caminho é evidente.
Mas até lá, santo Deus, as voltas e
canseiras que me esperam, os becos sem saída permanentes; o recomeçar tudo,
pois a rua que percorro a correr, em marcha acelerada ou, às vezes, em voo
planado, termina-se sem aviso na porta de uma casa (são sempre velhas casas de
madeira, com escadas de madeira nua e janelas com vidraças foscas) que se deixa
abrir sem se ter de bater; passando por quartos onde, com frequência, há
pessoas a desempenhar a sua vida, gente que não dá conta da minha presença ou
me deixa seguir caminho sem me interpelar.
Neste invadir involuntário da vida de
desconhecidos, sou assaltado por escrúpulos, desconfianças, receios, e tudo
isto me faz perder tempo, sobretudo quando o último quarto não leva a lado
nenhum e devo abrir uma janela de guilhotina para escapar dali e ir dar a uma
varanda de madeira que me leva a outra janela pela qual penetro até chegar a um
pátio que, esse sim, me despeja numa rua desconhecida e, pouco mais à frente,
há uma esquina de onde partem duas ruas. E agora, qual devo escolher para
chegar à rua dos restaurantes, às cercanias do cimo de onde se avista Hong Kong?
Claro que poderia perguntar a alguém, há gente que se cruza comigo ou está por ali como se apenas por ali estivesse para testemunhar a minha passagem, mas sei, de experiência acumulada, que a emenda pode ser pior que o soneto! A explicação pode ser tão baralhada que de nada me adianta ou, pior, o meu interlocutor vai propor que espere, que o acompanhe a um outro local onde se irá informar para me poder iluminar o caminho e eis-me metido em derivas secundárias que logo se transformam em epopeias e atrasam a minha demanda de chegar ainda hoje a Hong Kong, uma Hong Kong onde não é possível aportar por mar nem sobrevoar por avião.
Claro que poderia perguntar a alguém, há gente que se cruza comigo ou está por ali como se apenas por ali estivesse para testemunhar a minha passagem, mas sei, de experiência acumulada, que a emenda pode ser pior que o soneto! A explicação pode ser tão baralhada que de nada me adianta ou, pior, o meu interlocutor vai propor que espere, que o acompanhe a um outro local onde se irá informar para me poder iluminar o caminho e eis-me metido em derivas secundárias que logo se transformam em epopeias e atrasam a minha demanda de chegar ainda hoje a Hong Kong, uma Hong Kong onde não é possível aportar por mar nem sobrevoar por avião.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Praia Areia Branca, 2011; (2) Barcelona, 2012.
Absolutamente verdade. E quando se está quase a chegar lá, ou a fugir de lá, seja onde for, seja de quem for,
ResponderEliminaracorda-se; o que às vezes é bom, outras irritante.