Ao Domingo, a baixa do Funchal é sítio
deserto e, como em ocasião
anterior esfomeadamente constatara, praticamente
impossível encontrar uma porta aberta, seja restaurante ou café, onde se
trinque qualquer coisa.
Imbuído dessa insegurança saí do hotel
e olhei em volta como um náufrago tentando vislumbrar fumo no meio do oceano. E
eis que, logo do lado de lá da rua, o meu olhar embateu num toldo semi-descido,
numa montra com escritos, num par de cadeiras esplanadas e anunciadoras de boa
nova!
Aproximei-me cautelosamente e li os
dizeres sarrabiscados a giz na lousa-menu do Bar Ponte Nova, que assim se chamava o estabelecimento. O interior,
em si, tinha um ar rasca, mas havia sandes, tostas, hambúrgueres, omeletas, que
era tudo o que bastava para um pequeno-almoço tardio.
Entrei, sentei-me a um canto e pedi ao
homem que parecia ser o dono (um tipo moreno, cabelo rapado, tatuagens nos bíceps
e ar compatível com quem está em liberdade condicional) uma tosta mista e uma Brisa de maçã, um refrigerante
madeirense que faz recordar o nosso saudoso Carbo-Sidral.
Enquanto aguardava fui observando a
escassa clientela, a qual parecia uma pincelada das que Georges Simenon, o
escritor francês, usa para esboçar o ambiente de um café bas-fond de província.
Na mesa vizinha da minha estava
sentado um camarada que pelo porte, pelo louro do cabelo e pelo cachaço
taurino, presumi ser russo, ucraniano ou dessas bandas. Encontrava-se entretido
num aparelhito que se assemelhava a um protótipo de ipad de design e produção chinesa, mais uma imitação de loja dos
300 do que propriamente um aparelho que funcionasse. De dez em dez minutos o intimidante
proprietário aproximava-se da mesa e, sem pedido expresso, despejava-lhe num
copo de shot uma mistela verde que lembrava absinto e que o outro tragava de
uma só vez, produzindo um sonoro estalido de amarga satisfação.
Perto do russo, à distância de uma
mesa, sentava-se, roendo sabugos, uma rapariga, magra como um cão, muito
decotada e cujos olhos se tornavam estrábicos sempre que a sua atenção era
solicitada. O que era o caso, pois o russo interpelava-a com frequência para
lhe estender o brinquedo de plástico onde, pela explicação, iam desfilando
fotografias da pátria distante, da mãe, do filho pequeno, da ex-mulher e da
irmã, que ele destacava como sendo a vedeta da família:
“Pode ser uma filha da puta”, dizia
num português torcido de consoantes, “mas sabe cantar! Num só fim de semana, a
actuar em casamentos, pode chegar a tirar
cinco, seis, às vezes dez mil euros...”
E engolia mais um copo da misteriosa
mistura verde a que eu tentava decifrar o nome sem sucesso, pois a garrafa, uma
dessas que tem o gargalo artilhado com um tubinho de metal dispensador das
doses, não parecia ter rótulo ou identificação.
A rapariga magricela entortava os
olhos, inclinava-se mostrando o rego, acenava com a cabeça e, sempre que o
russo fazia ouvir no aparelho uma fanhosa canção da terra, levantava as mangas
e esboçava com os dedos roídos os gestos do bailinho da Madeira. O russo, sem
mover o corpo atolado na cadeira, corrigia-lhe os movimentos e demonstrava que
aquilo se dançava com os braços erguidos, sim, mas com os punhos cerrados, em
movimentos lentos e abaulados, não naquele lampejo saltitante de vira!
Durante a hora que por ali permaneci,
encantado com a progressão de acontecimentos, mastigando a excelente tosta
mista que o aberto sorriso de dentes afastados do dono pousara na minha mesa, especulei
sobre a profissão ou estatuto da rapariga escanzelada. Trazia a tiracolo um
miúdo dos seus seis anos que, imitando a mãe, cirandava com à vontade entre as
mesas, demorando-se a conversar com os clientes e, amiúde, saía a porta até às
cadeiras sem mesa encostadas à fachada do bar, pasmando para a mãe que baforava
mais um cigarro em companhia.
Tomava eu o meu descafeinado, e o
russo o seu quarto ou quinto shot esverdeado, quando ela, regressada da rua, se
debruçou com gantileza a uma mesa onde um recém-chegado, vítima evidente de AVC
pelo modo como arrastava a perna e pendurava um braço, bebia pausadamente o seu
meio copo de whisky.
“Sou o único que não estou a beber
álcool”, pensei, quase entristecido no meu isolamento.
Ora quando o simpático dono do bar me
veio soletrar a conta, aproveitei e perguntei que bebida tão popular era
aquela, se seria absinto...
“Não”, respondeu com um iluminado
sorriso, “é aguardente com funcho, uma receita nossa.” E, hospitaleiro,
ofereceu: “quer provar um pouquinho?”
Não tive como recusar, apenas coragem
para aproximar o indicador do polegar, a suplicar por uma dose mínima. Quando,
uns minutos depois, levei o cálice aos lábios, a minha admiração pelo poder de
encaixe soviético redobrou: de facto, a beberragem era intragável e só umas
saudades muito danadas podiam explicar que a um meio-dia e meia de Domingo um
tipo se entretivesse a calafetar-se usando tal pomada!
Disfarçadamente, logo que confirmei
que o dono estava fora de vista, verti o recheio do meu copo na garrafa do Brisa de maçã, apropriadamente moldada em
vidro verde-escuro.Desconfio que, na mesa esquinada à minha, o velhote
mirrado de boné de basebol vermelho, bigode descaído e olhinhos de babuíno afundados
numa cabeça que parecia emprestada de um museu etnográfico, deu conta da minha
manobra de decantação. Mas deixei o estabelecimento tranquilo, pois até que ele
fosse capaz de articular o facto em pensamento entendível pela clientela teria
tempo de regressar ao hotel, arrumar as malas, fazer check-out e apanhar o meu
avião de regresso ao outro lado do mar.
© Fotografias de Pedro Serrano, Funchal, Novembro 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário