[Este post foi publicado, a 4 Julho 2017, no BLITZ/EXPRESSO, e pode ser acedido no seguinte endereço: http://blitz.sapo.pt/principal/update/2017-07-04-Uma-visita-ao-santuario-de-Leonard-Cohen-na-ilha-de-Hydra]
|
Cinema ao ar livre de Hydra, Grécia. |
Por
sobre o muro, a copa da árvore espreitava delicadamente a parte superior do
écran do cinema ao ar livre, pertença do cineclube de Hydra. Dentro de momentos
ia ter lugar o visionamento do último concerto que Leonard Cohen dera em vida, a
primeira das duas sessões preparadas para as 218 pessoas que tinham vindo à Grécia
para o 8.º Meetup em torno de Cohen e
o primeiro após a sua morte. Por vezes, Marianne Ihlen, a sua musa mais
conhecida, participou nestes encontros.
|
Esplanada do restaurante Dusko. |
Como
jantei no Dusko, ali ao lado do cinema, na esplanada que Mister Cohen e Marianne
frequentaram ao longo dos anos que moraram na ilha, cheguei muito cedo e pude
escolher qualquer uma das 140 cadeiras de assento e espaldar em lona que se
alinhavam no espaço vazio. Sisters of
Mercy, difundida cautelosamente por uma coluna, garantia-me ter entrado no acontecimento
certo, pois na fachada do cinema nada havia que indicasse o que se ia passar no
interior; à bilheteira ninguém vendia bilhetes e apenas um homem rabiscava
apressadamente SESSÃO PRIVADA num papel fitacolado à porta. Os gregos de
serviço apenas sorriram quando perguntei se podia entrar, e não conferiram o
meu nome em nenhuma lista nem me obrigarem sequer a pronunciar o santo nome em
devoção naquele serão. Noite perfeita, havia até uma lua cheia de Junho no céu.
|
Marianne Ihlen, Axel ao colo, Leonard Cohen e amigo. Hydra, início anos 60 (© Foto propriedade do Cafe Roloi). |
Depois
os convidados foram chegando e quem ainda não se conhecia do Café Roloi ia
metendo conversa, perguntando-se de onde vinha: atrás de mim, por exemplo,
estavam dois argelinos, à minha esquerda sentou-se uma dinamarquesa que devia
ter sido uma gata sensual umas décadas antes; à cadeira da fila da frente
chegou uma alemã em quem já tropeçara no Krifo Limani, uma das tascas do porto
de Hydra e que, pela pose discreta, julguei uma vulgar turista e não um
daqueles hippies retardados que se revelavam pelas T-shirts estampadas com
títulos de canções, nomes de álbuns ou fragmentos de canções. Num ápice contabilizei
um dance me to the end of love, um ain´t no cure for love, dois songs of love and hate). Militavam
também na horda de fãs que salpicavam os caminhos e as escadas de Hydra um
punhado de concentracionários ostentando na pele a Order of the United Heart, uma tatuagem dos dois corações entrelaçados
que mimetizam uma estrela de David e fazem parte da iconografia desenhada pelo
próprio Cohen.
|
Fachada do cinema de Hydra. |
O
ecrã soluçou com as primeiras imagens e nas mais de três horas seguintes
assisti, primeiro surpreso e depois nem por isso, ao que era usual num concerto
ao vivo de Leonard Cohen, quando o próprio era vivo. As pessoas batiam muitas
palmas, as pessoas eram inundadas pela emoção com que ele lhes chegava ao
íntimo, choravam. Mas em algo que está a acontecer em segunda mão?! Sim, sim,
no começo foi tudo muito tímido, talvez ainda houvesse no ar uma réstia de cerimónia
racional, mas logo, tal ectoplasmas dos espectadores verdadeiros do concerto
projectados no pano de lençol, demos por nós a bater palmas ao fim de cada
canção; aplaudimos de cada vez que Mr. Cohen tirava o chapéu, cobria com ele o coração
e nomeava os músicos e o canto do globo de onde provinham.
O
último concerto que Leonard Cohen deu em vida (Dublin, Irlanda) abriu com Dance Me to the End of Love, uma canção
que parece falar de amor risonho e eterno quando, de facto, invoca as esfarrapadas
orquestras de prisioneiros que eram obrigadas a tocar no trajecto dos
condenados para as câmaras de gás e relembra as crianças que ficavam por nascer
nas barrigas das mães torradas nos fornos crematórios. Afinal Mr. Cohen era
judeu, nasceu quando Hitler subia ao poder, tivera apenas a sorte de o seu
Canadá nativo ficar demasiado longe... À minha frente a discreta alemã afundou
o queixo na palma da mão, as pontas dos dedos tocando as pálpebras. Era evidente
que chorava em silêncio, que lhe sucedia aquilo que L. Cohen provocava em todos
nós: o que cantava passava a ser connosco, nosso, ou funcionava como um
consolo, uma palmadinha leve no nosso ombro, um “vá, chora que eu estou aqui”.
Apeteceu-me bater discretamente ao ombro da alemã, desejei que o argelino não
fizesse o mesmo no meu.
|
Leonard Cohen durante o último concerto (Dublin, Irlanda, 2013). |
Ao
fim de hora e meia chegou o primeiro intervalo. Despertei e enfiei o casaco
que, felizmente, levara comigo: é que subitamente a noite fez-se mais fria.
Como outros, vim até à rua espairecer e desentorpecer as pernas; a alemã fumava
solitariamente sentada num banco, como se esperasse um autocarro tardio.
Na
breve alocução que nos fizera no início da sessão, Jarkko Arjatsalo – o
finlandês responsável pelo site
oficial de Leonard Cohen na internet e impulsionador dos encontros em Hydra –
informou-nos do programa das festas para o dia seguinte: à 7 da tarde ia ter
lugar a inauguração do banco de jardim em honra e memória de Leonard Cohen e à
noite, pelas 9, promovido pela Câmara Municipal de Hydra, um concerto com
músicos gregos em que seriam interpretadas canções do autor favorito. “Por
favor, apareçam”, pediu Jarkko com as vogais sibilando de ‘v’. Mas não era necessário
pedir, afinal estávamos todos ali por causa de Mr. Cohen e apesar de sermos
demasiados para caber à mesma mesa nas tavernas locais – nome usado na Grécia
para referir o que chamamos restaurantes
– não deixávamos nunca de comparecer onde era devido.
|
Fachada da casa de Mr. Leonard Cohen em Hydra. |
Ainda de manhã... Ainda
nessa manhã de Sábado, ao dobrar uma esquina dos atalhos que me levariam a
Kamini dera com uma devota sentada num degrau, a coberto da sombra projectada
pela casa de Leonard, a ler de um livrinho em voz audível. Passei muito
devagar, observando o fúcsia esfusiante da buganvília que trepa da soleira da porta,
de modo a não perturbar e a conseguir apreender que a senhora lia poemas de L. Cohen.
Não pensava deter-me, mas ao final da estreita rua – onde se passa um burro à
arreata em sentido oposto temos de nos coser com a parede – intrigou-me uma
mancha rectangular, do mesmo azul profundo do Mediterrâneo, na cal da parede
fronteira ao muro do quintal de Mr. Cohen. Ah!, era a placa de que tinha ouvido
falar: a Câmara decidira nomear a vereda com o nome famoso de quem ali morara.
Ouvia-se, nas tertúlias que mantinham o Roloi aceso de cânticos e conversa até
às seis da manhã, que Adam Cohen, filho e herdeiro de Leonard, se opusera a tal
ideia. Na esplanada do Roloi havia quem fosse apaixonadamente a favor ou contra
a placa toponímica.
“O
que quer dizer isto?” perguntei expondo o visor da máquina fotográfica ao rapazito
que me servia à mesa sob a latada de agulhas verdes do Pinheirinho, o
restaurante de Kamini onde por entre ramagens verdes se avista o azul do mar: OΔΟΣ.
|
Rua Leonard Cohen (nomeada a 10 Junho 2017). |
“Street.
Leonard Cohen Street”, respondeu, “em grego, a palavra ‘Rua’ surge antes do
nome da rua.”
“Em
português também”, contrainformei.
|
Baixada da casa de Mr. Leonard Cohen (inspiração de Bird on the Wire). |
Em
Hydra sigo quase sempre este trajecto, convém-me: vou ter ao minúsculo porto de
Kamini pelas ruelas e quelhas que partem da parte alta da vila, pois gosto de
deitar um olho à casa branca e cinzenta – as cores das casas de Hydra – de
Mister L. Cohen, de mirar a baixada enferrujada onde ainda se veem os cálices
de porcelana onde outrora corriam os fios telefónicos que inspiraram o primeiro
verso de Bird on the Wire; de constatar que caiu no lajedo puído da rua um figo que
pertence a Mr. Cohen, que os limões do quintal brilham como lanternas chinesas
que alguém esqueceu de soprar e que, pelo contrário, nas laranjeiras não se
distingue o verde dos frutos do da folhagem. E, confesso, às vezes sento-me no
mesmo degrau onde estava a leitora, a pensar em nada e a descansar das centenas
de degraus que já trepei.
|
Estrada Kamini-Porto de Hydra. |
Pode-se
chegar a Kamini (ele ia aqui à praia; aconteceu-lhe aqui mais do que um poema,
assinou-os como tal) descendo os meus socalcos e regressar ao porto de Hydra
pela estradinha marginal, sempre com a segurança de não irmos encontrar carros
ou motorizadas ou, sequer, maníacos das bicicletas. Na ilha de Hydra só há
burros e mulas por transporte, por isso se ouvem tanto e tão bem os sinos, o
canto dos galos ao raiar da aurora, o esfoliar das cigarras, o bramir
angustiado dos barcos de carreira que se preparam para deixar o cais. Seguir
por aquela estradinha é como viajar numa Yellow Brick Road ou assim, ao fundo
da paisagem a linha reconfortante do Peloponeso recorda que um homem não é uma
ilha e, entrelinhas, as ilhas que salpicam de pedra o azul profundo, numa delas
ergue-se uma diminuta capela à tona da água. A quem servirá? Numa curva da
estrada topo com uma construção recente, parece um resto arqueológico em estado
novo; um murito de pedra em U onde, ao fundo, espetaram uma travessa de madeira
clara. É o banco oferecido por quotização do Fórum de Fãs de Cohen – abrigado
por Jarkko no seu site –, consigo inferi-lo da pequena placa comemorativa
aparafusada numa das faces exteriores.
O local foi bem acertado, quem ali descansar
tem vista para o infinito, poderia estar ali sentado há três mil anos. Vai ser
inaugurado logo à tarde, há uma fitinha de plástico raiado em cor de laranja e
branco que o ameaça. O presidente da Câmara fará antes um breve discurso,
gracejará sobre a burocracia grega que impediu que fosse inaugurado ainda em
vida do homenageado; a propósito pedirá um
minuto de silêncio; alguém cantará
uma canção de Leonard Cohen e uma outra a propósito dele, romantizando
demasiado o filme... A meu lado, apertada pelo magote de gente, a senhora que
lia poemas à porta da casa de Mr. Cohen mete conversa comigo, vou-lhe
perguntando na língua do bardo o que lia de manhã. “Afinal de onde és?”
pergunta.
“Around
Lisbon”, respondo.
“Ah,
tinha de ser... E olha para nós, os únicos aqui a falar em português! Eu sou de
Viana do Castelo...”
É a
primeira vez que vem a Hydra e sabe tudo sobre o seu ídolo, tem frequentado o
Roloi como uma igreja; deve ter trinta e muitos anos, é desbocada, transborda,
e quando lhe revelo que uma das coisas que Cohen escreveu em Hydra foi o poema
de Alexandra Leaving, surpreende-me
com um:
“Ah,
não me fales noutras gajas. Para mim tudo se resume à Marianne, não quero saber
mais...”
Sinto
o cheiro do perigo no entardecer quente: são quase oito da noite e devem estar
uns 35 graus. Demasiado próxima dos meus olhos as costas da T-shirt de um fã –
onde se lê like a drunk in a midnight choir – alastram de
suor.
“Bem,
vou andando”, aviso, “não quero chegar tarde ao concerto e ainda quero passar
no hotel antes de jantar...”
“Espera,
não vás já, suplica ela, quero apresentar-te o Henning. É alemão e tem umas
histórias fantásticas sobre o Leonard...”
E
enquanto se move entre os presentes, procurando o tal Henning, vou-me afastando
em passo de passeio, sem olhar para trás como aconselha Bob Dylan.
Escolheram
para o concerto o largo espontâneo balizado pela fachada do museu e o molhe do
porto, mesmo junto ao local onde, de hora em hora, os transbordadores chegam de
Atenas e das outras ilhas do Golfo Saraónico. Hoje na viagem para Atenas gasta-se
pouco mais de uma hora, mas quando Mr. Cohen aqui veio dar havia barco duas
vezes por semana e a ligação demorava cinco horas.
|
Banco com vista na estrada Kamini-Hydra (© foto de Panagiotis Macromanolis, Junho 2017). |
Todos
os postes eléctricos de madeira tem um cartaz agrafado, a forma usual de
anunciar acontecimentos na ilha. A Câmara mandou vir do continente uma banda de
baixo, guitarra, bateria e voz; a cantora interpela a audiência chamando-nos “you
guys”, define o grupo como sendo de jazz, anuncia que vão apresentar temas do
seu novo álbum e que farão as suas próprias versões de alguns temas do
homenageado. Temo o pior. No entanto, o público aguarda pacientemente, tem fé:
o recinto está repleto, não há uma cadeira por ocupar, há mesmo gente sentada
sobre os velhos canhões que defendiam a ilha dos piratas e dos turcos. Somos
centenas e agora há muitos gregos misturados, coisa que não sucedeu nas etapas
precedentes dos festejos. A música faz-se ouvir e projectores potentes encandeiam
intermitentemente o público com um jacto de cor lilás.
O tal futuro CD da banda
em palco é desinteressante, as composições pouco inspiradas e a voz da cantora
formata as canções num padrão que as torna indistinguíveis. Ao final da segunda
já tinha visto tudo o que tinha a ver e levantei-me, pois não valia a pena
esperar por um milagre quando chegasse a vez às canções de Mr. Leonard Cohen.
Na esplanada do Roloi contornei por largo a minha conterrânea, que já ali está
sentada – também ela desistiu do espectáculo municipal.
|
Concerto municipal em homenagem a Leonard Cohen, Porto de Hydra. |
A
noite vai prendada e continua de lua cheia. Enquanto subo os 149 degraus que me
levam do porto até ao hotel, os mesmos que o homenageado descia diariamente
para vir de casa até ao centro da vila, não deixo de ouvir música claramente,
como se ainda estivesse no concerto. A vila de Hydra erige-se em anfiteatro, em
cascata S. Joanina, entalada entre o mar e as colinas e essa configuração dá-lhe
uma acústica maravilhosa. Identifico agora, finalmente, uma canção de Mr.
Cohen. É Hallelujah e os jovens
músicos não abdicaram de a torcer ao seu gosto pessoal, dão cabo dela na
reinterpretação. De qualquer modo... Cheguei à rua do meu hotel, paro para
recobrar o fôlego, a música continua a chegar-me com nitidez: First We Take Manhattan. A casa grega de
Mr. L. Cohen fica a escassa centena de metros do local onde estou e tal como
sucedia em 1967, quando escutava da janela os sons que se tocavam no Dusko,
poderia ouvir hoje as canções que escreveu ascendendo no ar como o canto de um
bêbado à meia-noite.
|
Porto de Hydra, Hydra, Grécia, Junho 2017. |
© Texto
e fotografias de pedro serrano, excepto quando indicado de outro modo, Hydra (Grécia).