A chair is still a chair
Even when there's no one
sitting there
But a chair is not a house
And a house is not a home
When there's no one there to
hold you tight,
And no one there you can kiss
good night.
Burt Bacharach/Hal David (A House Is Not a Home)
Agora podia ser a minha sogra que descia e se detinha um momento a saber o que lia eu, reclinado no sofá verde do patamar. Mostrava a capa do livro, ela perguntava se era bom e fazia-se ao último lance de escadas, antes de desaparecer numa das portas do hall, como se passasse dos bastidores para o palco; era isso o que me parecia da perspectiva sobranceira onde me encontrava.
Regressava o silêncio, eu voltava ao livro, alumiado pela luz larga das vidraças, que ocupavam todo o pé direito do patamar, uma luz tamisada pelos reflexos verdes do grande pinheiro manso, de copa espreguiçada em dossel sobre o jardim, as pontas verdes das agulhas a beliscar os vidros. Uma ocasião, o meu sogro tivera a inspiração de mandar abater a árvore, citando-lhe as desvantagens: a sombra sobre a casa; o empedrado do quintal levantado pelas raízes; as pinhas caídas, o manto de caruma a atrair fogos e bicharada; a tonalidade esverdengada que salpicava os vidros fixos do patamar, impossíveis de limpar a partir do interior...
Felizmente, ninguém, nem sequer a empregada encarregue de manter as janelas cristalinas, se prestou a câmara de ressonância da ideia, pelo que a peregrinação se ficou pelas intenções e a copa oblonga do pinheiro ali continuou, muito além da morte do meu sogro, bem depois de a casa ser fechada e vendida e de a minha sogra ter esquecido por completo que ali morara durante cinquenta anos.
Agora, no caminho de deixar o hall, a minha sogra poderia ter optado por rodar a maçaneta transparente da porta para a sala de estar e, entrando, ter deparado com a nora recostada no sofá cor de mostarda, um cigarro comodamente entalado na boca, pois necessitava ambas as mãos para folhear e alisar as páginas, mais altas do que largas, de um semanário.
"Ah, já cá estás!", diria ela numa prazenteira constatação de boas-vindas.
"Cheguei há uns três quartos de hora, mas o António, que ia a sair, disse-me que a sogra ainda estava lá em cima."
A cunhada que folheia jornais não é mais casada com o filho da minha sogra, mas mantém-se na família e não se nega jamais a qualquer sugestão para que ali jornadeie um fim de semana, ou se junte a um outro pretexto festivo. É claro que a presença poderia ser sempre justificada pelo alibi de acompanhar aos avós os dois filhos que vivem com ela, mas a verdade é mais extensa... Ela ama aquele lugar; encontrou ali tudo quanto uma casa deveria ser. Talvez por vir de uma gente um tanto formal, distante, incapacitada de alcançar a arte gregária da culinária e que arrisca encomendar uma pizza para a ceia de Natal, pois tanto faz o que se come... Não podia ser mais o oposto do que acontece na casa onde agora vagueia pelas páginas dos jornais: ali come-se com gosto e acarinha-se o prazer de ver os comensais apreciar o que comem; a cozinha é um prolongamento imprescindível da sala de jantar e é habitual encontrar por lá os restantes membros da família, encaixados em todos os espaços livres e contribuindo para o sucesso da refeição que se prepara: um fatia o rosbife braseado accionando a lâmina serrilhada de uma faca eléctrica tremente, outro revolve a salada com a maestria de um louco; uma outra, envolta em baforadas, verte na pia da banca a água onde cozeram as batatas.
Quando se chega e toca à porta, é a senhora da casa que vem abrir, para nos envolver num abraço estreito que deixa os próprios filhos à beira do embaraço.
"Mãe, estás a magoar-me", poderá queixar-se um deles, num riso nervoso de resistência ao abraço vindo directamente da infância.
"Vou à cozinha, fazer um café; queres que te traga alguma coisa?"
A minha cunhada suspende o restolhar do jornal; fica-se a pensar... Depois, talvez já a sonhar com o almoço e em como será doce a breve penitência da espera, agradece, diz não, pergunta se é necessária ajuda "lá dentro". Descartando a necessidade e conhecendo-a bem, a sogra atravessa a sala em direcção à porta para a copa, deixando no ar:
"Olha que ainda pode demorar: foi o António que ficou de trazer os mariscos para o arroz..."
A sala onde esta conversa acabou de se evaporar em silêncio, é ampla e ocupa todo o espaço entre duas das paredes mestras da casa. Serve comodamente o propósito de ser sala de estar e de jantar, e as zonas destinadas a cada uma delas são sugeridas por uma boca de lareira e pelo conjunto de tapetes, sofás e maples dispostos sobre o parquet encerado. Quem entra do hall, acha-se na sala de estar: um sofá de cor mostarda com três lugares e dois maples a condizer, ao abrigo de uma parede decorada por quadros da escola impressionista francesa e portuguesa, e uma pequena arca de madeira a funcionar como mesa de apoio, onde, no momento, repousam as pernas cruzadas da minha cunhada, os pés contentes baloiçando o ar como a cauda de um cachorro.
Aí vem ela, evoluindo cautelosamente e apoiando-se ao de leve numa bengala. Ao ver-me, e antes de iniciar a descida dos degraus, levanta um nadinha a bengala, saudando-me com a borracha afixada na ponta e que faz lembrar um daqueles calços que se pregam ao chão para evitar que as portas batam nas paredes. Falta-lhe agora um degrau para atingir o terreno seguro do patamar; levanto-me para a cumprimentar e perguntar se quer ajuda para o longo lanço de escadas até ao hall, um percurso onde não existe corrimão onde se possa amparar.
"Não, deixa estar", diz no seu tom um pouco seco, definitivo, "apoio-me à parede - já estou acostumada".
"Tem a certeza?", insisto. Não passarão três anos e eu mesmo, convalescendo naquela casa de uma doença grave, que praticamente me obrigou a reaprender a andar, terei horror àquele lanço desamparado das escadas, sobretudo na descida, pois é mais assustador deparar com o vazio ainda por percorrer do que enfrentar esse vazio quando nos ficou para trás das costas.
"A sério? Não custa nada fazer-lhe companhia até lá em baixo...".
"Não, não, continua a ler o teu livro...", responde num tom que envolveu o meu entretém numa ténue capa de desmerecimento.
Mas não me é assim tão fácil regressar no imediato às minha páginas, e fico-me a vê-la descer, a mão ossuda e de veias azuladas apoiando-se discretamente à parede do lado interno dos degraus. É leve e, mais depressa do que se suporia, chegou ao hall e demandou a sala de estar - ouço daqui tilintar nos caixilhos, os pequenos espelhos que forram a porta.
Lá dentro, a meio do salão, vigiados pelos sofás azuis dispostos em torno do fogão de sala, acotovelam-se duas filas de passe-partouts sobre o lintel da lareira. Ali se perfilam todos os membros da família, mesmo as aves de arribação que, como eu, vieram, estiveram e partiram. Algumas fotografias pintalgam de preto e branco o colorido da maioria - uma delas retrata a mãe da minha sogra ainda na meia idade, muito antes dos dias da bengala; outras são já dos dias da bengala e dos que vieram depois, recordando a quem lhe sobreviveu aquela pessoa que ali morou ao longo de décadas, encaixando-se e apagando-se tão diplomaticamente quanto pôde, a fim de não chocalhar o ambiente com a sua presença.
"Cada um tem o seu feitio...", é tudo quanto se permite comentar quando os restantes se exasperam com a personalidade do meu sogro, um homem que arrasta consigo céus cinzentos, ainda que o dia vá de perfeito anil e uma brisa perfeita agite delicadamente as frágeis flores das buganvílias que espreitam a varanda.
Ouço o clique familiar de uma chave a ser introduzida na porta da rua, um ruído atenuado àquela hora do dia, mas que, à noite, no silêncio, invade o hall e sobe pelo saguão das escadas, cronometrando quem chega a horas tardias. É o meu sogro, regressado das compras, e que, mal bate a porta, chama:
"Zé?!"
"Ó Zé!", vai engrossando o chamamento à medida que não chega uma réplica imediata.
O meu sogro é incapaz do mais modesto acto doméstico, pelo que é totalmente dependente da mulher para sobreviver. Além do mais, na hierarquia das obrigações, acha que a principal é a de que ela esteja presente de cada vez que a resolva chamar.
"Zé!; ó Zé!"
Ficando sem resposta e (tendo-me eu encolhido no sofá) não vendo alguém que lhe acuda aos sacos com que vem ajoujado, precipita-se pela porta que dá para a copa e a cozinha.
"Ah, estás aqui! Fartei-me de chamar! Para que horas é o almoço?"
Sentada à mesa da cozinha, entretida a saborear o seu café, a minha sogra é a imagem aparente da tranquilidade.
"Nunca antes das duas. O Pedro, a João e os miúdos ainda não chegaram da praia; além de que é preciso tratar de tudo isso que trouxeste..."
O meu sogro, que tem uma perspectiva mágica da culinária, garante que o peixeiro lhe garantiu que as amêijoas estão livres de areia e podem ir directamente para o lume.
"Dizem-te sempre isso, António, mas depois és o primeiro a queixar-te se encontras um grão que seja..."
O meu sogro consulta o relógio de pulso, exasperado, e decreta querer comer quanto antes - não quer esperar tanto tempo.
"Está bem", concede a minha sogra; "aqueço-te sopa e um filete de pescada dos que sobraram ontem; vais comendo, sozinho."
O meu sogro vira costas, hesita entre a porta da sala de jantar e a do hall e acaba por se decidir pela última - vai chegar a minha vez.
"Ah, olá, estás aqui...", diz do meio dos degraus do primeiro lance de escadas, implicando na frase que se poderá ter apercebido de eu estar ali e não ter reagido à sua chegada a casa.
"Sim; estou a ler um pouco - este sítio tem uma luz magnífica a esta hora."
"É", consente, "e poderia ser bem melhor se não fosse o pinheiro a tapar os vidros."
Não respondo. Com o meu sogro, a melhor estratégia é procurar não existir, pois agarra-se a qualquer presença como uma carraça à orelha de um cão. Não há nada que mais o deleite do que chegar a um sítio e desestabilizar quem lá se encontra, impedindo-o de continuar a fazer o que porventura esse alguém esteja a fazer. Por exemplo:
Entra na sala, senta-se no seu maple, abre o jornal e põe-se a espreitar por cima deste. Ah, eis uma vítima no seu radar, neste caso a minha cunhada Margarida a ler regaladamente um semanário, as pernas cruzadas sobre a pequena arca de madeira. Durante um longo minuto parece que nada vai acontecer, que ambos leem... De seguida, o meu sogro pigarreia e comenta uma qualquer insignificância que encontrou no seu jornal, usando um tom irónico e dando uma gargalhadinha de desdém. Como nada lhe chega dos lados da nora, pergunta:
"Já viste isto, ó Margarida? Só num país como este é que se pode passar tal coisa..."
A minha cunhada emite um breve grunhido de retorno, e continua a ler. Talvez se ache num dia de sorte e pense que escapa... Mas nem por sombras: nos próximos dez minutos ele emitirá opiniões sobre o que debica no seu jornal e quando se der conta de que esse tipo de investida não resultou, passará a comentar o que, de onde está sentado, consegue ler nas páginas traseiras do jornal onde a minha cunhada escondeu a cara - assim já não poderá ela sustentar que desconhece ou não está por dentro do tópico que ele glosa! Finalmente, ela desiste, levanta-se e anuncia que vai à cozinha, ver se por lá necessitam de ajuda... O meu sogro permanece regaladamente sentado, debicando agora o jornal que a minha cunhada abandonou sobre a arca e aguardando a chegada da próxima vítima.
"Tio, a avó manda dizer que o almoço está na mesa."
A Dominique vive em Bruxelas com os pais e o irmão, mas se está naquela casa gosta, como eu, de entreter tempo no patamar. Acho que, nos seus nove anos, olha para aquele lugar como se fosse assim uma espécie de casa na árvore, um refúgio de onde se pode antecipar a aproximação dos acontecimentos.
"Já chegaram todos?", pergunto, tentando situar-me.
"Sim... Os tios e os primos chegaram agora do Guincho - estão lá em baixo, no jardim, a passar-se pela mangueira, e já sobem. O avô está furioso por ter almoçado sozinho; diz que vai sair para tomar café na Sacolinha e que não espera por mais ninguém! A avó disse que fosse, e ainda lhe encomendou coisas para o lanche", ponteia ela com um sorrisinho.
Meneio a cabeça, sorrio também; digo que vá descendo - eu irei já. Mas ela quer ainda saber de que trata o livro que escorregou para o chão do patamar, quando a minha consciência deixou de ter alento para o segurar entre os dedos.
"É, mais ou menos, uma história de fantasmas... Uma família completa deles, que mora numa casa habitada por gente viva. Mas ninguém - de quem lá vive - os consegue ver nem sabe que moram também ali..."
Ela sabe bem o que são fantasmas, quer antes saber se acredito nisso. Talvez tenha um pouco de receio e se sinta mais tranquila se eu disser que são apenas produto da imaginação. Afinal, ando a ler um livro de fantasmas em absoluta tranquilidade, até adormeci ao fazê-lo.
"Achas que eu já podia lê-lo?", pergunta apanhando o livro da carpete e estudando a capa.
"Mmm..., não sei se ias gostar e - mais do que isso - desconfio que a tua mãe não ia gostar...", respondo pensando na minha cunhada Nita, que prefere livros com histórias positivas e finais felizes.
"Mas a Carolina lê! Adora ver filmes destes..."
"Não queiras comparar: a tua prima é muito mais velha do que tu!"
"Sim, mas já os lia quando era pequena: às escondidas, até; disse-me. E disse que a deixavas ver filmes de terror em tua casa quando tinha treze anos!"
"Tá..., voltamos a falar quando fizeres treze anos. Vai descendo e diz que fui só lavar as mãos...", despachei-a, pois aquela linha de argumentação já dera o que tinha a dar. Fantasmas...
Agora a casa foi fechada e vendida, estava a crescer demasiado para o número de pessoas que lá viviam; os lances de escadas multiplicaram-se, tornaram-se perigosos, coitados, eles que viram tanta gente subir e descer. A maior parte do recheio foi já retirada e transportada para o novo apartamento na baixa de Cascais... Mas como as chaves ainda não foram entregues definitivamente aos novos proprietários, algumas peças de mobiliário ainda aguardam destino na casa velha. Uma delas é o sofá verde, que continua no patamar, actualmente na penumbra, pois os reposteiros das largas janelas foram corridos, assim o sol não crestará a madeira dos degraus nus.
Fantasmas... Quando se está na infância, como estava a Dominique nesse dia, os fantasmas arrepiam, tem-se-lhes pavor instintivo, à flor da pele, sem precisarmos de raciocinar sobre eles, sobre a sua substância ou existência. O tempo passa e esse medo atenua-se, descoloriu-se, pode até tornar-se risível: como pudemos um dia acreditar ou recear tal inexistência?! Mais tarde, bastante mais tarde, quando o ruído da vida regrediu à sua real importância, é possível que nos venhamos a aperceber que, afinal, os fantasmas existem e eramos nós, todos nós: eu, tu, ele; nós, vós; eles.
© fotografias de pedro serrano, Cascais, 2007 e 2016.