Ora, olhando para tudo isto, o que pareceria lógico, agora que a possibilidade de uma vacina se aproxima e é necessário planear como vacinar e por onde começar? Dir-se-ia que, à semelhança do que foi decidido um pouco por todo o lado (veja-se Espanha, França, Reino Unido, Suécia, por exemplo), o primeiro grupo prioritário a vacinar fosse o dos velhos, entendido como os dos 65/70 anos em diante, sem limite superior de idade. Sendo, como se diz, as vacinas em fabricação tão eficazes, evitar-se-ia uma imensa quantidade de mortes, sofrimento e entupimento dos serviços de saúde.
Mas, na DGS, a lógica parece ser uma batata grelada e, como já nos habituaram desde o começo da pandemia, dali tinha de sair qualquer coisa arrevesada, atamancada, ao arrepio do que acontece no país e aparenta ser tecnicamente sensato e aceitável. Uma tal Comissão Técnica de Vacinação Contra o Covid19, a primeira das duas comissões que o Ministério desencantou para tratar disto, resolveu que a grande prioridade, em termos dos primeiros a vacinar, seria o grupo dos 55-75 anos de idade! Os outros mais velhos que esperassem, logo se veria quando chegassem mais vacinas. Perante a bizarria, o povo nem quer acreditar no que ouve e fica a interrogar-se: mas porquê tal decisão, o que a baseia, que não estamos a ver? Ora baseia-se na sacrossanta evidência científica, esse escudo mágico dos dirigentes: as bulas das novas vacinas anti Covid19 nada dizem sobre a sua eficácia e segurança além dos 75 anos, de modo que, trigo- limpo-farinha-Amparo, estes não se vacinam. Simples, não é? Bem, pelo menos aparenta-o ter sido para a inteligência molecular que preside à tal comissão e tornou públicos os doutos critérios, tal se uma vacina tivesse de ser encarada como um medicamento perigosíssimo que, administrado fora da baia das recomendações imediatas do fabricante, pudesse matar, estropiar ou deixar de proteger alguém. Um belo e novo fundamento, fornecido pelo próprio Ministério da Saúde, para ajudar a robustecer a histeria dos negacionistas, dos grupos anti-vacinas e, ainda, um belo contributo para amplificar, junto da população em geral, o receio e a falta de confiança nas soluções que lhe são apresentadas. É claro que, apesar do que nos explicam, e conhecendo o que a casa gasta, por trás desta atitude de paladinos da saúde, mais do que tentar proteger os velhinhos poderá estar camuflada uma lavagem de mãos, ou seja: assim, nunca ninguém vai poder responsabilizar-nos por ter aconselhado um produto sobre o qual não foi reportada evidência, outra bonita acha na fogueira da desconfiança da população perante as vacinas e a confusão geral estabelecida em torno delas. Já vimos isto acontecer (igual que até arrepia) com as máscaras e o seu uso, lembram-se? "Não há evidência", "não use", "pode ser um perigo", "podem fazer mais mal que bem", "aconselharemos quando as entidades internacionais...", e o resultado foi o que se viu: andamos todos por aí com elas, é um dos meios de protecção mais eficazes e seguros, sobretudo se associado ao distanciamento e à higienização das mãos.
Prof. Dr. Valter Bruno Fonseca (Director dos Serviços de Qualidade da DGS; responsável pela Comissão Técnica de Vacinação anti-Covid19). |
Mas não, a DGS não vai por aí! Não se antecipa. Duvida. Ainda não tem a evidência que há-de chegar da Agência Europeia do Medicamento, dos fabricantes, da Organização não sei de quê. Prefere ter as costas quentes. Num certo prisma, esta atitude assemelha-se-me tão criminosa como negar água a quem está a morrer à sede, argumentando que os resultados das análises à potabilidade ainda não chegaram... Morres, mas, pelo que depende de nós, morres saudável!
O que, para mim, sempre foi um mistério, é não ver na tal comissão, na DGS, ninguém pensar segunda outra lógica, isto é, enformada por um pensamento de Saúde Pública: as vacinas são, e têm sido desde sempre, um poderoso aliado da saúde, um produto seguro, e o que está neste momento nos pratos da balança leva a que deva ser usado e aconselhado, pois o risco das consequências da doença neste grupo (70/75 e mais anos) é assustadoramente maior do que hipotéticos efeitos secundários. Nem sequer, nestas decisões disparatadas, se vê a sombra de um outro critério básico em saúde pública: a aceitabilidade. Para uma intervenção ter sucesso é necessário que seja aceite pela população a quem se dirige, como um todo. Calculo o que não terá ficado a pensar toda a gente, o povo votante, desta decisão de excluir aqueles que mais precisam!
Quem, de imediato, se apercebeu do perigo foi o primeiro-ministro, que pode ser acusado de tudo, menos de não ter um apuradíssimo instinto de sobrevivência e de conseguir prever consequências políticas. E, Deus o ajude, saltou logo para a praça pública, dizendo que não aceitaria um critério desta natureza. É óbvio que, com isto, passou mais um cartão de inutilidade à tal comissão (e à DGS), mas quem se põe a jeito... De todo o modo, esta desautorização (merecida) é péssima para a manutenção de uma desejada decisão política baseada na técnica, pois describiliza os técnicos. Já por aqui tinha referido, falando na criação desta comissão, parecer-me inadmissível não ver um único médico especialista em Saúde Pública integrá-la, pois foi, e é, a Saúde Pública que sempre lidou com populações e planeamento de medidas dirigidas a grandes grupos, epidemias, pandemias e vacinas. Está a ver-se o resultado de tal altivez.
Nota: Muito mais poderia ser dito sobre os anunciados, e atrapalhados, critérios para vacinação Covid19, limitei-me a escolher apenas o mais gritante.