27 setembro 2012

PAIS & COMPANHIA


Às vezes, no Porto, ao descer a Antero de Quental já perto da Arca de Água, apetece-me, como fazia no final da década de 70 e primeira metade dos 80, ir bater ao vidro da janela dos Pais.
Se o fizesse, teria de me inclinar, pois é uma janela de meia-cave e as vidraças, aprisionadas em losangos debruados por uma grade de ferro, quase roçam o passeio da rua e, lá dentro, quem dos sofás da sala olhasse a rua veria pouco mais do que o contorno translúcido dos tornozelos de quem anunciava a sua chegada...
Ao longo de quatro ou cinco anos, essa sala de meia-cave, com entrada directa pelo quintal, foi local de encontro de uma manada de raparigas e rapazes que se despediam da adolescência e festejavam com ruído as liberdades da entrada no mundo adulto.
À medida que as suas filhas cresciam em graça e desembaraço, mal sonhavam os Pais pais o que lhes estava prestes a suceder quando frases como:
“Vais logo a casa dos Pais?” ou
“Então encontramo-nos logo nas Pais...”
se transformaram numa espécie de senha. Havia ainda os mais atrevidos que, embora não pagassem renda nem morassem lá, convidavam:
“Aparece logo à noite em casa dos Pais...”
“A que horas...?”
“Sei lá, depois de jantar...”, deixando no vago se este jantar era o deles ou o dos Pais!
E eu, tal com mais uma dezena de outros da minha laia ou convivência, passámos a dispor da sala de estar dos Pais como se fosse nossa, expulsando os donos da casa para a sala de jantar ou para outros recessos de porta trancada do primeiro andar da moradia. De tal modo o fenómeno se arrastou e assumiu contornos graves que, sem uma queixa, o pai Pais mandou construir, num prolongamento da casa vizinho da garagem, uma nova sala de estar. De pouco lhe adiantou, coitado: a nova sala foi prontamente invadida por quem já sobrava na sala primitiva e o pai Pais não teve outro remédio se não o de continuar exilado no seu canto da sala de jantar. Mesmo aí, o seu refúgio era precário, pois escassas horas após terem chegado os jovens invasores achavam-se no direito de cear e começavam a rondar a cozinha à procura de encontrar revestimento para o apetite que as conversas e a audição de música iam activando.
Com infinita paciência, a mãe Pais ia assistindo ao assalto à despensa, por vezes ajudava até à confecção das torradas, scones e omeletas, e orientava o trânsito de bules de chá, compotas e outros bens perecíveis que se iam sumindo pelas salas quase sem deixar migalhas que, posteriormente, devessem ser varridas. Simultaneamente, numa sabedoria pragmática, ia deitando um olho às teias de relações que se iam entretecendo pelos sofás e cantos da sua casa. Sem alarido, sem gritos de alerta ou suspiros audíveis.
No andar de baixo daquela casa, sob o signo dos dias, se cravaram estacas de amizade, se fizeram e desfizeram romances, nasceram casamentos que ainda perduram ou se desmoronaram com o passar dos anos. Somente no que se refere ao item casamentos posso, assim de repente, enumerar pelo menos três, um dos quais o meu.
Visto de agora, com a visão panorâmica que a passagem do tempo permite lançar sobre os percursos da vida, foi bonito o que os pais dos Pais fizeram pelos filhos, por todos nós os que beneficiámos desse porto de abrigo que tremeluzia pelas vidraças convidativas que deitavam para a rua.
Às vezes, quando desço a Antero de Quental, ali perto da Arca de Água, tenho pena de já não serem horas de ir bater àquela janela.

(À Nena e Armando Pais, e à memória da ‘vovó’ Cármen e do Joca)
© Fotografias de Pedro Serrano, Porto, Setembro 2012.

24 setembro 2012

SONHO AZUL SOBRE MAR AZUL



Sonho Azul:
Sonhei com o farol da Prainha
Em Santiago
Com águas que se alisavam
Feito um lago.
Sonhei com o farol da Prainha
Muito aprumado
Branco como um lenço de assoar
Todo debruçado ao rés do mar
A luzir, a acenar, a espreitar
Como se alguém pudesse chegar
Com olhos sequiosos a enxugar
Marejados, regressados,
Da ausência resgatados.

© Poema & fotografia: Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), 2011

Cesária Évora & Marisa Monte cantam "Mar Azul" de B. Leza, 2011.

21 setembro 2012

CONVERSAS CRUZADAS


Soprava uma brisa muito ténue do mar e as conversas mantidas pelas pessoas sentadas no murete que separa a praia do Titã do largo picadeiro, por onde caminhava, chegavam-me em perfeito estado. Esses fragmentos sonoros iam mudando à medida que me deslocava e os vultos sentados iam mudando:
“Não chegou a abrir, mas fez um hematoma do caraças – teve de ir ao hospital!”
......
“Ó Júlio, vens embora ou vais ficar aí toda a tarde...?”
.....
“Agora ela anda por aí numa cadeirinha de rodas...”
.....
“Pá, ficou uma parede tão macia que posso lá espetar um prego só de o carregar com os dedos.”
.....
Chegou-me uma mensagem pelo telemóvel, eu próprio me sentei no murete para a ler e lhe responder convenientemente. Ao meu lado estavam sentadas duas mulheres no declive dos trinta: ambas de cabelo ruivo, calções, soquetes e ténis, irmanadas no gosto de se vestirem com roupa já não muito adequada à idade que aparentavam. Uma falava, a outra ouvia, ia debitando umas interjeições.
“Depois soube que ele estava no Porto, percebes? A Susana tinha-o visto na véspera à noite... Mas fingi que não sabia de nada e liguei-lhe...”
“E ele...?”
“Não atendeu... Depois ligou-me mais tarde, a saber o que lhe queria... E eu: Era só para saber de ti, como não falamos há que tempos... Que tens feito, por onde andas?”
E, em honra da outra, imitava o tom de voz da resposta, digno mas com o travo do iogurte no limite de prazo.
“E vai ele: Por acaso agora até estou na cidade, pode ser que a gente se veja...”
“E eu: é só dizeres, gosto sempre de rever os amigos... E desliguei. No dia seguinte, como ele não disse mais nada, liguei-lhe ao fim do dia?”
“E ele?”
“Não atendeu... Entretanto, nessa noite a Cristina disse à Susana que o viu na discoteca, parece que estava com uma gaja, loura, mais uns amigos..., pelo menos estavam todos na mesma merda de mesa. Podes imaginar como fiquei, podre!, mas não reagi. Na quarta-feira ligou, já se tinha ido embora, falei pra ele de modo muito seco...”
“E ele?”
“ Disse: ai, até parece que estás com os azeites... E eu, sem me desmanchar: Ai sim, é que às vezes as pessoas não se comportam como estávamos à espera...”
O meu telemóvel emitiu o pio de mensagem entregue ao destinatário. Levantei-me e dei uma mirada à queixosa, a ver se lhe coscuvilhava a expressão, mas as lentes espelhadas dos óculos de sol não me deixaram ver mais do que a fila de automóveis estacionados do outro lado da rua.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Sever do Vouga, 2012; (2) Praia do Titã (Matosinhos), 2010.


16 setembro 2012

SEXO IMPLÍCITO


Nas inúmeras palavras usadas para nomear o sexo feminino, do infantil pipi ao terno e fremente passarinha, descobri a minha preferida na primeira metade dos anos 80, em Trás-os-Montes.
Passo por cima, delicadeza para com os meus ouvintes mais sensíveis, as gamas mais pesadas desta categorização em que a palavra pito, um termo que se acotovela no reino das aves com passarinha mas num canto um tanto mais picante da criação; em que a palavra pito, dizia, é, mesmo assim, a mais inocente da tremenda escadaria.
Resta, ao leitor curioso e interessado em frequentar uma formação intensiva na matéria, a opção de ir passar dois dias à cidade do Porto (ou de Braga) e abrir os ouvidos às conversas de rua, os olhos aos ditos sarrabiscados nas paredes e onde esses termos aparecerão profusamente, seja a solo ou acoplados ao órgão da prima, da tia e até da mãe. Enfim, acabam por ser termos muito familiares naquelas paragens.
Mas, como referi no primeiro parágrafo, foi em Trás-os-Montes que ouvi pela primeira vez a designação que passei a preferir a todas as outras pelo que de telúrico, cinegético e misterioso encerra, conservando o eco do bater de asas que encerra o poético passarinha, mas acrescentando-lhe o dramatismo de uma fuga por entre carvalhos numa manhã orlada de brumas...
O termo que, para manter alguma tensão literária, tenho até ao momento mantido ciosamente encerrado entre lábios é perseguida e ouvi-o, referido com a desenvoltura indiferente que se usa para uma palavra quotidiana, pela primeira vez numa consulta médica. Como poderão calcular, fiquei intrigadíssimo com a expressão, mas não era coisa que pudesse esclarecer com a senhora que se sentava à minha frente: nem a razão de ser do termo nem se, de facto, ela se estava mesmo a referir ao que eu pensava.
Mas é que estava mesmo, assim o confirmei dezenas de vezes nos anos vindouros, nas expressões de novas, intermédias e até naquelas idades em que, errónea e reumaticamente, somos tentados a supor que esse tipo específico de perseguição já não se pratica. Sim, ouvia-a sobretudo na boca de mulheres, embora os homens também se lhe referissem desse modo, mas menos amiúde pois tinham tendência a preferir os tais termos que, por decoro, prometi não utilizar por aqui.
Devo acrescentar, para desilusão das feministas que me leem e em cujas cabeças antecipatórias já fervilharão teorias de opressão e violência doméstica, que as referências à perseguida de cada uma não eram vocalizadas em tom magoado, angustiado ou de insustentável karma; não, havia no nomear a mesma naturalidade funcional de fenda que contém um pipi, a idêntica ternura singela de uma passarinha ou o mesmo carácter volátil, penugento e pipilante de um pito ainda não no espeto. Suponho, eu, que não sou antropólogo e muito menos sociólogo, que o uso do termo estaria associado à procura e ao sucesso que esse bem anatómico, essa mais valia – como agora se costuma dizer, alcançava na zona.
Na zona e à época, seria talvez melhor adicionar em nome da precisão, pois ignoro se a designação por lá se mantém neste novo século em que as escolhas são muitas, as preferências diversas, os sexos se confundiram e a libertação da mulher a fez finalmente assumir à luz do dia aquilo que, de facto, sempre foi: uma caçadora.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) 2010; (2) 2011.

15 setembro 2012

O PÁSSARO MARAVILHOSO


Esta noite acordei e não voltei a adormecer. E naqueles instantes em que o pensamento lógico ainda não se organizou num fluxo e nos quedamos alheios ao raciocínio, que parece embotado pelo sono, veio-me à tona da consciência o fragmento isolado de uma parede que vi na parte antiga de Barcelona há uns meses atrás, uma superfície de materiais justapostos, aspecto  macio e cores serenas, parede que até fotografei. Qual o motivo, no meio da noite, pelo qual emergiu essa imagem e não outra qualquer? Não faço ideia, não tenho sequer andado a pensar em muros ou na Catalunha nos últimos dias.
Organizadas ou não, gosto de pedras, sempre gostei (veja, sobre o assunto, o texto And it stoned me) e acho que cada vez as aprecio mais à medida que dou conta da sua presença nos meus caminhos. As pedras, para além da beleza individual que lhes pode advir do formato ou da textura são uma testemunha do tempo, parecem transportar no seu silêncio a sabedoria muda de quem assistiu à génese do mundo, de quem assistiu, impávido, às tropelias e correria insensata da humanidade, agora para as Cruzadas, depois para os centros comerciais. Estão ali, todas dizem, indiferentes ao resultado: “se quiseres aprende comigo.”
Um dia, descobri, aliviado, que havia um povo que pratica o culto da reverência por pedras e senti-me menos passível de vir a ser catalogado como excêntrico ou inimputável. É no Japão e quem andou por lá reparará com facilidade como eles as colocam em evidência em variados pontos da sua geografia e existência. Lembro-me de, nos jardins onde fica o Pavilhão Dourado, em Quioto, me quedar, pasmado, a observar como várias pessoas, incluindo famílias inteiras, se detinham a examinar com detalhe e trocando comentários profusos um arranjo de pedras no chão, um pedaço de muro ou até mesmo uma pedra isolada, perdida num tufo de ervas vulgares ou acamada num ninho de caruma, como se dali pudesse, de repente, eclodir um pássaro maravilhoso.

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Barcelona, 2012; (2) Quioto (Japão), 2005.