Às
vezes, no Porto, ao descer a Antero de Quental já perto da Arca de Água,
apetece-me, como fazia no final da década de 70 e primeira metade dos 80, ir
bater ao vidro da janela dos Pais.
Se o
fizesse, teria de me inclinar, pois é uma janela de meia-cave e as vidraças,
aprisionadas em losangos debruados por uma grade de ferro, quase roçam o
passeio da rua e, lá dentro, quem dos sofás da sala olhasse a rua veria pouco
mais do que o contorno translúcido dos tornozelos de quem anunciava a sua
chegada...
Ao
longo de quatro ou cinco anos, essa sala de meia-cave, com entrada directa pelo
quintal, foi local de encontro de uma manada de raparigas e rapazes que se
despediam da adolescência e festejavam com ruído as liberdades da entrada no
mundo adulto.
À
medida que as suas filhas cresciam em graça e desembaraço, mal sonhavam os Pais
pais o que lhes estava prestes a suceder quando frases como:
“Vais
logo a casa dos Pais?” ou
“Então
encontramo-nos logo nas Pais...”
se
transformaram numa espécie de senha. Havia ainda os mais atrevidos que, embora
não pagassem renda nem morassem lá, convidavam:
“Aparece
logo à noite em casa dos Pais...”
“A
que horas...?”
“Sei
lá, depois de jantar...”, deixando no vago se este jantar era o deles ou o dos
Pais!
E
eu, tal com mais uma dezena de outros da minha laia ou convivência, passámos a dispor
da sala de estar dos Pais como se fosse nossa, expulsando os donos da casa para
a sala de jantar ou para outros recessos de porta trancada do primeiro andar da
moradia. De tal modo o fenómeno se arrastou e assumiu contornos graves que, sem
uma queixa, o pai Pais mandou construir, num prolongamento da casa vizinho da
garagem, uma nova sala de estar. De pouco lhe adiantou, coitado: a nova sala
foi prontamente invadida por quem já sobrava na sala primitiva e o pai Pais não
teve outro remédio se não o de continuar exilado no seu canto da sala de jantar.
Mesmo aí, o seu refúgio era precário, pois escassas horas após terem chegado os
jovens invasores achavam-se no direito de cear e começavam a rondar a cozinha à
procura de encontrar revestimento para o apetite que as conversas e a audição
de música iam activando.
Com
infinita paciência, a mãe Pais ia assistindo ao assalto à despensa, por vezes
ajudava até à confecção das torradas, scones e omeletas, e orientava o trânsito
de bules de chá, compotas e outros bens perecíveis que se iam sumindo pelas
salas quase sem deixar migalhas que, posteriormente, devessem ser varridas. Simultaneamente,
numa sabedoria pragmática, ia deitando um olho às teias de relações que se iam
entretecendo pelos sofás e cantos da sua casa. Sem alarido, sem gritos de
alerta ou suspiros audíveis.
No
andar de baixo daquela casa, sob o signo dos dias, se cravaram estacas de
amizade, se fizeram e desfizeram romances, nasceram casamentos que ainda
perduram ou se desmoronaram com o passar dos anos. Somente no que se refere ao
item casamentos posso, assim de
repente, enumerar pelo menos três, um dos quais o meu.
Visto
de agora, com a visão panorâmica que a passagem do tempo permite lançar sobre
os percursos da vida, foi bonito o que os pais dos Pais fizeram pelos filhos,
por todos nós os que beneficiámos desse porto de abrigo que tremeluzia pelas
vidraças convidativas que deitavam para a rua.
Às
vezes, quando desço a Antero de Quental, ali perto da Arca de Água, tenho pena
de já não serem horas de ir bater àquela janela.
(À Nena e Armando Pais, e à memória da ‘vovó’ Cármen e do Joca)
© Fotografias de Pedro Serrano, Porto, Setembro 2012.