Esta noite acordei e não voltei a adormecer. E naqueles instantes
em que o pensamento lógico ainda não se organizou num fluxo e nos quedamos
alheios ao raciocínio, que parece embotado pelo sono, veio-me à tona da
consciência o fragmento isolado de uma parede que vi na parte antiga de
Barcelona há uns meses atrás, uma superfície de materiais justapostos, aspecto macio e cores serenas, parede que até
fotografei. Qual o motivo, no meio da noite, pelo qual emergiu essa imagem e
não outra qualquer? Não faço ideia, não tenho sequer andado a pensar em muros ou
na Catalunha nos últimos dias.
Organizadas ou não, gosto de pedras, sempre gostei (veja,
sobre o assunto, o texto And it stoned me) e acho que cada vez as aprecio mais à
medida que dou conta da sua presença nos meus caminhos. As pedras, para além da
beleza individual que lhes pode advir do formato ou da textura são uma
testemunha do tempo, parecem transportar no seu silêncio a sabedoria muda de
quem assistiu à génese do mundo, de quem assistiu, impávido, às tropelias e
correria insensata da humanidade, agora para as Cruzadas, depois para os
centros comerciais. Estão ali, todas dizem, indiferentes ao resultado: “se
quiseres aprende comigo.”
Um dia, descobri, aliviado, que havia um povo que pratica o
culto da reverência por pedras e senti-me menos passível de vir a ser
catalogado como excêntrico ou inimputável. É no Japão e quem andou por lá
reparará com facilidade como eles as colocam em evidência em variados pontos da
sua geografia e existência. Lembro-me de, nos jardins onde fica o Pavilhão Dourado, em Quioto, me quedar,
pasmado, a observar como várias pessoas, incluindo famílias inteiras, se
detinham a examinar com detalhe e trocando comentários profusos um arranjo de
pedras no chão, um pedaço de muro ou até mesmo uma pedra isolada, perdida num
tufo de ervas vulgares ou acamada num ninho de caruma, como se dali pudesse, de
repente, eclodir um pássaro maravilhoso.
© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Barcelona, 2012; (2) Quioto (Japão), 2005.
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