Este ano – 2017, o ano de Pedrogão
Grande – o Verão vai esquisito, temporão, como se o Outono pretendesse
antecipar-se. No Porto, num dos jardins da sede da Ordem dos Médicos, a meio do
mês de Agosto o chão está pejado de folhas, tal se Outubro já aqui morasse. Cá
em casa, no quintal, os marmeleiros começaram a amarelecer os frutos no início
de Julho, nos primeiros dias de Agosto estavam maduros, tive que me decidir a
fazer marmelada quando vi um ou dois desistentes, caídos no chão já com as
manchas castanho-escuro que prenunciam a podridão.
E no entanto, fazer a marmelada era
uma marca que anunciava o Outono, uma rotina dos finais de Setembro, recordo
bem a azáfama que envolvia o processo em casa dos meus pais e nós, as crianças,
arredados da proximidade, pois o fogão ganhara propriedades de erupção
vulcânica e a cozinha transformara-se numa potencial Pompeia. Em volta das
panelas, afogueadas, a Tomásia, a Maria, a Belmira ou a Sr.ª Berta, conforme as
temporadas, envolviam os braços nus em panos, uma vez que as explosões da massa,
que era preciso revolver em contínuo com colheres de pau de grande tamanho,
tinha propriedades verticais de arremesso e chegavam a deixar o tecto manchado!
Agora imagine-se o que um produto destes, pastoso, pegajoso e fervente não faria
à pele dos braços e que tragédia causaria se atingia a cara ingénua e curiosa
de um dos miúdos...
Sim, fazer marmelada era um processo
perigoso desde o começo, o partir e descascar dos marmelos, um fruto que podia
simultaneamente ser duro e escorregadio como rochas cobertas de limo, e em cuja
textura rija os gumes das facas gemiam ou escorregavam sem aviso ou demarcação
de território. E no final, quando a maravilhosa massa, ainda tenra, já
repousava nas tijelas alinhadas sobre o murete ao sul do quintal, devolvendo a
luz do sol em tonalidades tijolo e laranja, o perigo transmutava-se nas abelhas
e vespas, incrédulas com o tesouro que se lhes oferecia, sedentas, sendo
capazes das mais sinceras ferroadas para se manter naquela súbita riqueza. É
que, possivelmente, elas pressentiam o sol de pouca dura, pois mal a superfície
das tijelas coagulava lá vinha o algodão embebido em aguardente desinfectar a
superfície e o retalho de papel vegetal amortalhar a doce tentação. E a
cozinha, meu Deus, que campo de batalha, permaneciam despojos durante um dia ou
dois! Tachos com rebordos sujos por um asfalto alaranjado, colheres que quase
era preciso deitar fora pois resistiam a livrar-se de resíduos e a sua cor de
madeira clara ficava arruinada; panos de cozinha directos para o lixo, azulejos
a limpar da miríade de salpicos; quanto ao tecto o dano podia ser permanente e
a solução teria de ficar para outra ocasião, era um assunto de pintores, quase
estucadores, discutido à mesa por uma mãe desolada.
Pois, minhas amigas, o tempo rodou e
fazer marmelada tornou-se uma actividade simplificada, sem grandes perigos
envolvidos, uma missão que se pode despachar numa tarde de Verão. É, à luz da
nova realidade, a receita que vos deixo aqui hoje, pois que uma marmelada feita
em casa continua a não ser comparável aos desenxabidos produtos que há por aí à
venda nas prateleiras de supermercados ou mesmo das mercearias gourmet.
INGREDIENTES
Marmelos
(a palavra vem do latim melimellu,
maçã doce como o mel) – se não os têm no
seu quintal procure comprá-los sem manchas na casca.
Acúcar
– branco ou amarelo, como preferir, sabendo que o amarelo confere cor mais
escura à marmelada. A regra de mistura clássica dos ingredientes é a de 1Kg de
açúcar por Kg de marmelo já livre do seu cascabulho (a parte central onde estão
as pevides a partir das quais se faz a geleia de marmelo), mas afianço-vos que
com uma relação de 1kg de marmelo por 700 a 750 gramas de açúcar se produz uma
marmelada igualmente saborosa, na qual o sabor do fruto surge mais sublinhado e
que será menos prejudicial à saúde do que a mais açucarada.
Água
– q.b. e numa relação de 0,5 litro de água por Kg de marmelo.
Vai precisar ainda de uma panela de
pressão e de facas bem afiadas. Recomendo-lhe que utilize uma faca grande, pois
é necessária alguma força/pressão para seccionar os frutos e extrair a zona das
pevides.
a) A casca dos marmelos é revestida por
uma penugem que lembra a face da puberdade e de que é preciso livrarmo-nos:
faça-o lavando os marmelos em água fria ou escovando-os. Corte os marmelos em
quartos, mas mantenha a casca, retirando as manchas que esta possa ter. Recorte
a zona central, onde estão as pevides e se acumula a pectina, essencial para a
confecção da geleia (se pretende fazer geleia reserve e mantenha esta parte dos
marmelos no frigorífico, tapado, ou congele se pensa que vai demorar até
recobrar coragem para regressar a este assunto dos doces confeccionados a
partir deste fruto).
b) Pese os marmelos e estabeleça a
correspondente quantidade de açúcar e água.
c) Deite os marmelos e o açúcar numa
panela de pressão, cubra com a água que mediu e mexa o conjunto com uma colher
de pau (ou de plástico, não use nunca metal) até o açúcar se encontrar bem
derretido e misturado. Feche a panela e mantenha-a em lume brando até que a
válvula apite ou silve (20 a 30 minutos). Depois deste aviso sonoro mantenha a
panela ao lume por mais 20 minutos, sempre em lume brando. Desligue o lume e
deixe que, naturalmente, a panela perca a pressão até se poder abrir. Com a varinha
mágica passe o conteúdo da panela até se transformar num líquido viscoso,
homogéneo. Mantenha a panela ao lume e, sempre com o calor no mínimo, vá
mexendo a massa até que esta atinja uma consistência em que a colher de pau, ao
atravessá-la de norte para sul, deixe um momentâneo sulco que recordará aos
mais imaginativos a separação das águas do Mar Vermelho quando Moisés o
atravessou com a restante trupe. Desligue o lume.
d) Com uma concha de sopa deite a
massa de marmelo em tigelas ou tacinhas previamente lavadas e bem secas (modo
de evitar humidades ou contaminações que se transformarão em bolores). Deixe
arrefecer e, durante uns dias, permita que a marmelada tome uns banhos de sol
sem protector, o que a ajudará a secar.
e) Finalmente, e se quer que se mantenha
por bastante tempo, pincele a superfície com aguardente ou whisky ou qualquer
outra bebida branca com um teor de álcool acima dos 40º, procedimento que não
deixará transmitirá nenhum sabor da bebida à marmelada. Depois cubra-a com um
retalho de papel vegetal cortado à medida.
Está pronta a ser comida, embora haja
quem a inaugure ainda na fase líquida ou pastosa, lambendo a colher de pau, passando
um dedo no rebordo das tigelas ou rapando a panela em nome da luta contra o
desperdício.
Nota:
Não foi aqui ventilado ou tratado a transcendente questão de como obter
marmelada clara ou escura e de como se chega à supremacia branca ou
pele-vermelha. Há quem advogue que submergir os quartos de marmelo cortados em
água temperada com sumo de limão evita a oxidação do fruto, mas eu, seguindo o
método, não consegui evitar que tal enegrecimento sucedesse. Depois, neste
mesmo âmbito, há quem diga que os objectos de metal favorecem a oxidação e o
escurecimento dos marmelos mas, sendo franco, confesso que não consegui
cortar os marmelos usando colher de pau.
© Fotografias de pedro serrano, 2017.