30 agosto 2017

UMA QUESTÃO DE COR (reflexões sobre marmelada)

A minha amiga Maria João Pinto Basto escreveu-me a propósito do texto "Marmelada Leiga", adicionando um valioso contributo ao esclarecimento do mistério da cor da marmelada (anémica versus bronzeada). Diz ela que os marmelos devem ser descascados e que o produto resultante da sua cozedura não pode ser reduzido a papa com varinha mágica mas sim usando apenas o passevite. Ah o passevite, essa maravilhosa geringonça com que se fazia puré nos anos 60 e me faz lembrar cinema francês da nouvelle vague e penteados com bicos e muita laca, muita laca. Como achávamos que éramos modernos e que ingénuo e enganador parece tudo isso visto de hoje... Bem, voltemos à marmelada: os fundamentos das considerações da João têm origem numa receita de uma velha empregada da tia do marido, aliás uma ex-empregada pois a tia morreu e a empregada não foi incluída na herança, só a receita.

© Fotografia gentilmente cedida por maria joão pinto basto, porto, 2016





24 agosto 2017

MARMELADA LEIGA (ou de como fazer marmelada sem sofrimento)

Este ano – 2017, o ano de Pedrogão Grande – o Verão vai esquisito, temporão, como se o Outono pretendesse antecipar-se. No Porto, num dos jardins da sede da Ordem dos Médicos, a meio do mês de Agosto o chão está pejado de folhas, tal se Outubro já aqui morasse. Cá em casa, no quintal, os marmeleiros começaram a amarelecer os frutos no início de Julho, nos primeiros dias de Agosto estavam maduros, tive que me decidir a fazer marmelada quando vi um ou dois desistentes, caídos no chão já com as manchas castanho-escuro que prenunciam a podridão.
E no entanto, fazer a marmelada era uma marca que anunciava o Outono, uma rotina dos finais de Setembro, recordo bem a azáfama que envolvia o processo em casa dos meus pais e nós, as crianças, arredados da proximidade, pois o fogão ganhara propriedades de erupção vulcânica e a cozinha transformara-se numa potencial Pompeia. Em volta das panelas, afogueadas, a Tomásia, a Maria, a Belmira ou a Sr.ª Berta, conforme as temporadas, envolviam os braços nus em panos, uma vez que as explosões da massa, que era preciso revolver em contínuo com colheres de pau de grande tamanho, tinha propriedades verticais de arremesso e chegavam a deixar o tecto manchado! Agora imagine-se o que um produto destes, pastoso, pegajoso e fervente não faria à pele dos braços e que tragédia causaria se atingia a cara ingénua e curiosa de um dos miúdos...
Sim, fazer marmelada era um processo perigoso desde o começo, o partir e descascar dos marmelos, um fruto que podia simultaneamente ser duro e escorregadio como rochas cobertas de limo, e em cuja textura rija os gumes das facas gemiam ou escorregavam sem aviso ou demarcação de território. E no final, quando a maravilhosa massa, ainda tenra, já repousava nas tijelas alinhadas sobre o murete ao sul do quintal, devolvendo a luz do sol em tonalidades tijolo e laranja, o perigo transmutava-se nas abelhas e vespas, incrédulas com o tesouro que se lhes oferecia, sedentas, sendo capazes das mais sinceras ferroadas para se manter naquela súbita riqueza. É que, possivelmente, elas pressentiam o sol de pouca dura, pois mal a superfície das tijelas coagulava lá vinha o algodão embebido em aguardente desinfectar a superfície e o retalho de papel vegetal amortalhar a doce tentação. E a cozinha, meu Deus, que campo de batalha, permaneciam despojos durante um dia ou dois! Tachos com rebordos sujos por um asfalto alaranjado, colheres que quase era preciso deitar fora pois resistiam a livrar-se de resíduos e a sua cor de madeira clara ficava arruinada; panos de cozinha directos para o lixo, azulejos a limpar da miríade de salpicos; quanto ao tecto o dano podia ser permanente e a solução teria de ficar para outra ocasião, era um assunto de pintores, quase estucadores, discutido à mesa por uma mãe desolada.
Pois, minhas amigas, o tempo rodou e fazer marmelada tornou-se uma actividade simplificada, sem grandes perigos envolvidos, uma missão que se pode despachar numa tarde de Verão. É, à luz da nova realidade, a receita que vos deixo aqui hoje, pois que uma marmelada feita em casa continua a não ser comparável aos desenxabidos produtos que há por aí à venda nas prateleiras de supermercados ou mesmo das mercearias gourmet.
INGREDIENTES
Marmelos (a palavra vem do latim melimellu, maçã doce como o mel)  – se não os têm no seu quintal procure comprá-los sem manchas na casca.
Acúcar – branco ou amarelo, como preferir, sabendo que o amarelo confere cor mais escura à marmelada. A regra de mistura clássica dos ingredientes é a de 1Kg de açúcar por Kg de marmelo já livre do seu cascabulho (a parte central onde estão as pevides a partir das quais se faz a geleia de marmelo), mas afianço-vos que com uma relação de 1kg de marmelo por 700 a 750 gramas de açúcar se produz uma marmelada igualmente saborosa, na qual o sabor do fruto surge mais sublinhado e que será menos prejudicial à saúde do que a mais açucarada.   
Água – q.b. e numa relação de 0,5 litro de água por Kg de marmelo.
Vai precisar ainda de uma panela de pressão e de facas bem afiadas. Recomendo-lhe que utilize uma faca grande, pois é necessária alguma força/pressão para seccionar os frutos e extrair a zona das pevides.

CONFECÇÃO
a) A casca dos marmelos é revestida por uma penugem que lembra a face da puberdade e de que é preciso livrarmo-nos: faça-o lavando os marmelos em água fria ou escovando-os. Corte os marmelos em quartos, mas mantenha a casca, retirando as manchas que esta possa ter. Recorte a zona central, onde estão as pevides e se acumula a pectina, essencial para a confecção da geleia (se pretende fazer geleia reserve e mantenha esta parte dos marmelos no frigorífico, tapado, ou congele se pensa que vai demorar até recobrar coragem para regressar a este assunto dos doces confeccionados a partir deste fruto).
b) Pese os marmelos e estabeleça a correspondente quantidade de açúcar e água.
c) Deite os marmelos e o açúcar numa panela de pressão, cubra com a água que mediu e mexa o conjunto com uma colher de pau (ou de plástico, não use nunca metal) até o açúcar se encontrar bem derretido e misturado. Feche a panela e mantenha-a em lume brando até que a válvula apite ou silve (20 a 30 minutos). Depois deste aviso sonoro mantenha a panela ao lume por mais 20 minutos, sempre em lume brando. Desligue o lume e deixe que, naturalmente, a panela perca a pressão até se poder abrir. Com a varinha mágica passe o conteúdo da panela até se transformar num líquido viscoso, homogéneo. Mantenha a panela ao lume e, sempre com o calor no mínimo, vá mexendo a massa até que esta atinja uma consistência em que a colher de pau, ao atravessá-la de norte para sul, deixe um momentâneo sulco que recordará aos mais imaginativos a separação das águas do Mar Vermelho quando Moisés o atravessou com a restante trupe. Desligue o lume.
d) Com uma concha de sopa deite a massa de marmelo em tigelas ou tacinhas previamente lavadas e bem secas (modo de evitar humidades ou contaminações que se transformarão em bolores). Deixe arrefecer e, durante uns dias, permita que a marmelada tome uns banhos de sol sem protector, o que a ajudará a secar. 
e) Finalmente, e se quer que se mantenha por bastante tempo, pincele a superfície com aguardente ou whisky ou qualquer outra bebida branca com um teor de álcool acima dos 40º, procedimento que não deixará transmitirá nenhum sabor da bebida à marmelada. Depois cubra-a com um retalho de papel vegetal cortado à medida.
Está pronta a ser comida, embora haja quem a inaugure ainda na fase líquida ou pastosa, lambendo a colher de pau, passando um dedo no rebordo das tigelas ou rapando a panela em nome da luta contra o desperdício.
Nota: Não foi aqui ventilado ou tratado a transcendente questão de como obter marmelada clara ou escura e de como se chega à supremacia branca ou pele-vermelha. Há quem advogue que submergir os quartos de marmelo cortados em água temperada com sumo de limão evita a oxidação do fruto, mas eu, seguindo o método, não consegui evitar que tal enegrecimento sucedesse. Depois, neste mesmo âmbito, há quem diga que os objectos de metal favorecem a oxidação e o escurecimento dos marmelos mas, sendo franco, confesso que não consegui cortar os marmelos usando colher de pau.   


© Fotografias de pedro serrano, 2017.