21 novembro 2013

EMPREENDEDORISMO

A fotografia é, propositadamente, tirada de longe e o homem vê-se mal. É que eu não queria, de jeito algum, dar-lhe cabo do negócio ao cair no risco de identificá-lo, não vá algum burocrata zeloso entrar aqui pelo blog dentro e classificar a actividade como ilegal ou, pior ainda, passível de ser colectada pela Autoridade Tributária.
Por razões gémeas não vou identificar o local onde isto se passou, a não ser confessar que é um pequeno, mas muito movimentado, parque de estacionamento de Lisboa.
Quanto ao personagem central deste texto, é um homem grisalho, mais magro do que gordo e, por agora, geralmente trajando camisa aos quadrados sobre t-shirt, que o tempo vai ficando frio e ele passa o santo dia ao ar livre a ajudar na complexa e delicada tarefa de estacionar automóveis em zona com parquímetro.
Dantes, pouco mais de um ano atrás, as máquinas de sacar moedas ainda não se tinham multiplicado até àquela zona, mas, como sabemos, o mundo é um local tendencialmente imperfeito. Nesses dias de antanho, bastava recolher as moedas que os automobilistas do costume lhe iam despejando na mão e eis que, sem aviso, lhe espetam ali séria concorrência, mudamente estribada em posturas municipais e vigilantes fardados! Era adaptar-se ou morrer ou, talvez, emigrar, como aconselhou o outro. Mas, caralhos nos fodam, para onde vai emigrar um arrumador de meia-idade, sem mais skills do que gestos e lábia?
Ah, mas o homem deu a volta por cima, conseguiu até, em passe duplo, eliminar a concorrência da gajada que, com a crise a espremer todos os ratos para fora da toca, começou a surgir por ali com a maior das latas. Passou a ostentar, pendurado ao pescoço num daqueles identificadores de plástico que usam os participantes dos congressos, uma etiqueta que diz EMEL, provavelmente recortada a um dos envelopes que os fiscais deixam no para-brisas de quem multam.
Quando a gente chegava e, confuso, tentava optar entre um dos vários arrumadores daquele nico de estacionamento, ele agitava o identificador aos nossos olhos e avisava-nos, alto e bom som:
“Eh, sou o único aqui que tem acordo com a EMEL...”
E, tendo o público isso em mente, aproximava-se do condutor que se dirigia para o parcómetro e confidenciava:
“Dr., não precisa maçar-se...” E tentava especificar a demora: “Até que hora pensa estar por aqui...?”
“A manhã inteira, amigo”, informava-o eu, informavam-no outros clientes tão rendidos quanto eu ao seu tom educado e prestável, irradiando confiança, “pelo menos umas três horas...”
“Basta deixar 50 cêntimos”, transmitia em voz acautelada, “eu vou gerindo isto...”
E assim era; eficiência total. Ao chegar ao carro ao fim da manhã, algo apreensivo de o homem ter zarpado ou poder encontrar no limpa-para-brisas o temido envelope com a multa, encontrava, ao invés, um ticket de estacionamento entalado entre a borracha e o vidro, às vezes habilmente encravado no fecho da porta.
Hoje de manhã, saía eu do carro, ele aproximou-se, pediu com delicadeza:
“Dr., importa-se de deixar uma frincha na janela do seu lado?”
Quando olhei para ele num olhar interrogado, explicou-se:
“Os gajos já não aceitam o tiqué no exterior, agora tem de estar dentro do carro, senão multam!”
Como equipamento para cumprir a nova exigência, mostrou-me uma pequena cana de ponta bifurcada que lhe surgiu nas mãos como um milagre e ali estivemos uns curtos segundos a acertar o intervalo no vidro necessário a que pudesse cumprir a sua função com o zelo a que sempre me habituou.
“Hoje devo demorar só umas duas horas...”, informei-o, passando-lhe uma moeda de dois euros, pois não sei se voltarei ali antes do Natal.
“Não há azar, Dr., pode ir tranquilo...”
Fui tranquilo, regressei eram 10:50 e, ao chegar ao carro, vi um bilhete de estacionamento pousado sobre o tablier, rigorosamente alinhado e com a hora limite visível como manda a lei: 11:35.
Pus o motor a trabalhar, articulava a marcha-atrás, quando ouvi bater suavemente no vidro. Era ele, e pedia com cortesia:
“O Dr. importa-se que eu fique com o tiqué ou ainda vai precisar dele...?”
Estendi-lhe o papelito ainda palpitante e cada um se fez à vida.
 © Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Novembro 2013.


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