A fotografia é, propositadamente,
tirada de longe e o homem vê-se mal. É que eu não queria, de jeito algum, dar-lhe
cabo do negócio ao cair no risco de identificá-lo, não vá algum burocrata
zeloso entrar aqui pelo blog dentro e classificar a actividade como ilegal ou,
pior ainda, passível de ser colectada pela Autoridade Tributária.
Por razões gémeas não vou identificar
o local onde isto se passou, a não ser confessar que é um pequeno, mas muito
movimentado, parque de estacionamento de Lisboa.
Quanto ao personagem central deste
texto, é um homem grisalho, mais magro do que gordo e, por agora, geralmente
trajando camisa aos quadrados sobre t-shirt, que o tempo vai ficando frio e ele
passa o santo dia ao ar livre a ajudar na complexa e delicada tarefa de estacionar
automóveis em zona com parquímetro.
Dantes, pouco mais de um ano atrás, as
máquinas de sacar moedas ainda não se tinham multiplicado até àquela zona, mas,
como sabemos, o mundo é um local tendencialmente imperfeito. Nesses dias de
antanho, bastava recolher as moedas que os automobilistas do costume lhe iam
despejando na mão e eis que, sem aviso, lhe espetam ali séria concorrência,
mudamente estribada em posturas municipais e vigilantes fardados! Era
adaptar-se ou morrer ou, talvez, emigrar, como aconselhou o outro. Mas,
caralhos nos fodam, para onde vai emigrar um arrumador de meia-idade, sem mais skills do que gestos e lábia?
Ah, mas
o homem deu a volta por cima, conseguiu até, em passe duplo, eliminar a
concorrência da gajada que, com a crise a espremer todos os ratos para fora da
toca, começou a surgir por ali com a maior das latas. Passou a ostentar,
pendurado ao pescoço num daqueles identificadores de plástico que usam os
participantes dos congressos, uma etiqueta que diz EMEL, provavelmente recortada
a um dos envelopes que os fiscais deixam no para-brisas de quem multam.
Quando a gente chegava e, confuso,
tentava optar entre um dos vários arrumadores daquele nico de estacionamento,
ele agitava o identificador aos nossos olhos e avisava-nos, alto e bom som:
“Eh, sou o único aqui que tem acordo
com a EMEL...”
E, tendo o público isso em mente,
aproximava-se do condutor que se dirigia para o parcómetro e confidenciava:
“Dr., não precisa maçar-se...” E
tentava especificar a demora: “Até que hora pensa estar por aqui...?”
“A manhã inteira, amigo”, informava-o
eu, informavam-no outros clientes tão rendidos quanto eu ao seu tom educado e prestável,
irradiando confiança, “pelo menos umas três horas...”
“Basta deixar 50 cêntimos”, transmitia
em voz acautelada, “eu vou gerindo isto...”
E assim era; eficiência total. Ao
chegar ao carro ao fim da manhã, algo apreensivo de o homem ter zarpado ou
poder encontrar no limpa-para-brisas o temido envelope com a multa, encontrava,
ao invés, um ticket de estacionamento entalado entre a borracha e o vidro, às
vezes habilmente encravado no fecho da porta.
Hoje de manhã, saía eu do carro, ele
aproximou-se, pediu com delicadeza:
“Dr., importa-se de deixar uma frincha
na janela do seu lado?”
Quando olhei para ele num olhar
interrogado, explicou-se:
“Os gajos já não aceitam o tiqué no
exterior, agora tem de estar dentro
do carro, senão multam!”
Como equipamento para cumprir a nova
exigência, mostrou-me uma pequena cana de ponta bifurcada que lhe surgiu nas
mãos como um milagre e ali estivemos uns curtos segundos a acertar o intervalo
no vidro necessário a que pudesse cumprir a sua função com o zelo a que sempre
me habituou.
“Hoje devo demorar só umas duas
horas...”, informei-o, passando-lhe uma moeda de dois euros, pois não sei se
voltarei ali antes do Natal.
“Não há azar, Dr., pode ir
tranquilo...”
Fui tranquilo, regressei eram 10:50 e,
ao chegar ao carro, vi um bilhete de estacionamento pousado sobre o tablier,
rigorosamente alinhado e com a hora limite visível como manda a lei: 11:35.
Pus o motor a trabalhar, articulava a
marcha-atrás, quando ouvi bater suavemente no vidro. Era ele, e pedia com
cortesia:
“O Dr. importa-se que eu fique com o
tiqué ou ainda vai precisar dele...?”
Estendi-lhe o papelito ainda
palpitante e cada um se fez à vida.
Maravilhoso.....
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