20 junho 2025

ESTRADA PARA SARAJEVO

1. Enfiei uma das alças da mochila ao ombro, rodei a chave na fechadura da porta e encostei o portão do quintal, produzindo eu próprio o ruído familiar que me chega aos ouvidos sempre que alguém, que chega ou vai, o fecha. Virei à esquerda e percorri o pedaço de rua que a liga à avenida. Desci a avenida, constatando como é diversa a perspectiva de quem a palmilha daquela de quem percorre o mesmo trajecto de automóvel. Arbustos espreitam por sobre os muros, tufos e manchas coloridas de flores, pessoas entretidas na monda dos jardins, um cão que, lá ao fundo, atravessa a rotunda num trote leve e matinal; tantas sonoridades que, como uma malha sonora, se elevam e cruzam para acompanhar o meu breve caminho até à paragem das camionetes. Fico por ali, a aguardar a chegada da minha, e este seria um momento em que, se ainda fumasse, acenderia um cigarro suspensório. Em alternativa, vou consultando o relógio do telemóvel, como se me fizesse diferença se a carreira irá, ou não, chegar ao minuto preciso impresso no bilhete.

A viagem até Lisboa demora uma hora e a camioneta, aparecida após uma curvatura triunfal da sua grande massa, saúda-nos emitindo um silvo de portas escancaradas, extensivo a mim e à senhora que aguarda fumando e balouçando a perna no banco de alumínio, centrado sob o coberto de plástico ondulado da paragem. Vai pouca gente, para já, e escolho um lugar com o desperdício do privilégio dos primeiros a chegar. Dali, da minha posição altaneira, vejo deslizar a paisagem, que, geralmente é um conglomerado, pouco mais que baço se transito aquele asfalto ao volante e ao nível de um rasteiro rés-do-chão. A camionete vai-se enchendo à medida que silva e se detém por um breve minuto nas paragens da rota, pois o balanço demográfico é desequilibrado: entra gente e não sai ninguém. Campos verdes, canaviais, árvores (sobreiros, pinheiros mansos, acácias, magotes de eucaliptos); valas e valados, extensões aprumadas de vinhas e pomares..., tudo isso vai forrando o silêncio entorpecido que paira no habitáculo, uma modorra gerada por quem dormita, por quem pensa para os seus botões, ou se embrutece fixando um ecrã. A paisagem desfeia-se à medida que nos aproximamos da grande cidade, desordena-se, improvisa-se, encaixota-se sem graça ou lógica nos espaços deixados vagos, mas a superlotação não consegue, mesmo assim, apagar a tipologia de charneca em que tudo se implantou. Na última paragem somos todos regurgitados para o exterior e cada um se dispersa pelo caminho que lhe está destinado. Entro num táxi, digo a palavra-chave: aeroporto, terminal 1.

2. O trânsito vai rolando, fluido, apesar de compacto, até à Rotunda do Relógio, onde, de súbito, parece ter sido desfraldado um bafo quente de caos e tubos de escape azulando o ar quente. Na curta alameda que conduz aos terminais do aeroporto acumulam-se e multiplicam-se as filas paralelas de automóveis, num desalinho e numa ânsia similar às turbamultas de um país onde acabou de ser desencadeado um golpe de estado, sanguinário e arbitrário, e, quem pode, tenta alcançar o ponto de fuga das grandes aves prateadas que rolam pelo asfalto e procuram a liberdade do céu azul, mesmo que para isso tenha de se pendurar numa asa, acoitar-se num trem de aterragem. É sempre este o nosso cartão de visita com brasão de terceiro mundo: quem chega e quem parte está-lhe diariamente sujeito e respira de alívio quando, finalmente, é encaixotado, em lotes de três de cada lado da risca ao meio, no seu avião. Até lá, vários círculos de inferno aguardam: o check-in faça você mesmo que nós temos mais que fazer do que perder tempo consigo; o labirinto da fila concentracionária para chegar ao controlo da segurança; o gasoso extermínio enjoativo que emana das perfumarias do duty-free que somos forçados a atravessar para atingir os nossos pontos de partida. Haverá manga para nós ou teremos ainda de nos arrastar nos solavancos dos autocarros que nos hão-de ir despejar ao exílio das pistas. E por falar em manga: é hora de almoço, o melhor é comer alguma coisa, pois nos aviões nem um copo de água oferecem nos dias que correm. Queres levar uma mala de porão? Vais pagar, conforme o peso. Queres ir à janela? Vais pagar pelo privilégio. Queres ir nas filas da frente, para melhor poder apanhar o próximo voo de ligação? Só se pagares. Pretendes uma sandes de contraplacado ou uma bebida gaseada? Paga, mas em plástico, que não temos tempo para trocos nem bolsos para moedas. 

A praça central das comidas assemelha-se a um arraial de feira em dia de santo popular. Há filas de gente para todos os stands e as mesas — atravancadas ao longo da arena circular — são agora corridas, como bancos de tasca, e estão repletas de gente, copos abandonados e embalagens de plástico ou de cartão onde em tempos estiveram sandes, hambúrgueres, saladas, crepes ou bolos, esbanjamentos que ninguém tem pressa em vir recolher. Alguns passageiros do tipo sustentável tentam ir encaixar as bandejas usadas nos rodízios de recolha, mas as prateleiras estão cheias, já pejadas por outros altruístas como eles. Consigo encaixar-me numa cadeira livre de uma mesa encostada a um contentor de lixo restaurativo. Afasto o mais que consigo os desperdícios de quem ali se sentou anteriormente, tentando não invadir com os despojos o espaço de quem mastiga sentado a centímetros de mim. Nas minhas costas, numa outra mesa, mas tão contíguos que ouço a conversa como se a mantivessem comigo, dois casais portugueses discorrem em torno dos lugares onde estiveram quando estiveram em Londres e um dos tipos narra, desvanecido, o glamour da rua onde o prato forte são as lojas que vendem produtos certificados pela Casa Real, e por onde deambulou sentindo-se tão catapultado aos céus como se tivesse vislumbrado, ao vivo, a caspa do rei ou a pelica das luvas da rainha Camila. Concentro-me no meu sumo de laranja e na minha sandes de presunto, um menu tão caro como se fôra confeccionado por appointment de D. Duarte, o Pio, Ex-regente agrícola, porém candidato vitalício a regente de Portugal.

3. O aeroporto de Frankfurt é gigantesco! De cada vez que por aqui passo comprovo o facto, com uma tal certeza que, se ali devo fazer escala por aqui, procuro que o tempo de espera entre dois voos não seja inferior a duas horas, sob risco de poder perder o avião seguinte no simples percorrer de toda aquela infinitude de gares, passadeiras e escadas rolantes, corredores. Apesar disso, a calma ordenada que paira em nada se assemelha ao caos lisboeta de onde venho. Quilómetros de corredores indicam direcções e trajectos com clareza, pontilhados por espaços de descanso e cadeiras suficientes para quem quiser fazer uma pausa, servidos por lojas e pontos de comida sensatamente distribuídos ao longo do percurso. Para ir para onde vou, devo abandonar o espaço Schengen e desse modo voltar a submeter-me a controlo das autoridades policiais, os quais atravesso num minuto. Apropriadamente, para quem o destino é quase um fim do mundo, a zona para onde me devo dirigir corresponde ao final do alfabeto (Z) e só aí deverei encontrar a referência à gate onde me aguardará o próximo transporte, pois ainda é cedo. Em passo regalado, percorro quilómetros de corredores, cada vez mais desertos de gente à medida que avanço, até que desaguo no meu destino. A sala de saída tem vista panorâmica para a pista e o sol começa a descer no horizonte. Sento-me a uma mesinha baixa, abro um pacote de bolachas de água-e-sal para entreter: já não meto nada à boca desde a uma da tarde! A conta gotas, vão chegando pessoas à porta Z18: há de tudo, mas adensa-se por ali uma tonalidade de gente de aspecto ingénuo, antiquado, algumas mulheres têm a cabeça envolvida em lenços que, após lhe cobrirem os cabelos, dão uma graciosa volta em torno do pescoço como remate. Como, para o poder envolver com o tecido, tiveram de transformar a  cabeleira num puxo,  as cabeças adquiriram um contorno alongado, tal a do ET no filme do Spielberg. Uma voz inaugura um microfone numa língua de musicalidade alienígena que suponho ser servo-croata; depois passa pelo arranhado do alemão e finalmente ao inglês. É o meu voo, bilhetes de executiva e pessoas com necessidades especiais e crianças em primeiro lugar. Deixo-me estar, a olhar a pista e os aviões estacionados que, pelo pôr do sol, adquiriram uma tonalidade acinzentada. 

4. O voo entre Frankfurt e Sarajevo é curto e, apesar do sol já se ter posto em terra, as alturas voltaram a revelá-lo: teimoso, tinge o horizonte acima das nuvens e provoca reflexos iridescentes na ponta da asa do avião. Mas o fenómeno pouco dura, o astro perdeu-se a ocidente, e quando o avião começa a planar e a descer em socalcos é já noite cerrada. Vejo luzes aproximarem-se, primeiro dispersas e tímidas, depois compondo uma mancha amarelada sobre a escuridão: deve ser Sarajevo, só pode ser Sarajevo e, a crer pelo perímetro luminoso, é uma cidade pequena, mal temos tempo de começar a sobrevoar a mancha luzente e eis que já mergulhamos sobre ela. 

À minha espera, está um tipo na casa dos vinte, com um papel onde, em grandes letras negras, está impresso o meu nome. O rapaz chama-se Emin Murtic, segundo aprendi no SMS, enviado pela agência de táxis, que recebi no telemóvel mal o avião aterrou. Pergunta-me se quero arrancar já ou se pretendo trocar dinheiro antes. A divisa local é o marco bósnio e há imensas máquinas de ATM e stands de troca de divisas no átrio do pequeno e muito arrumado aeroporto. "Podemos ir", digo, ocultando o detalhe de que já passara por ele anteriormente, contornando-o, mais ao seu cartaz, para ir levantar dinheiro numa máquina nas suas costas.

Emin é alto e louro, e a ser alguma coisa será de etnia sérvia, pois, pelo aspecto descolorido, tomá-lo-iam por alemão em qualquer lado. O seu inglês resume-se a good night, change money e mais um punhado esquálido de frases soltas, pelo que percorremos a vintena de quilómetros até ao centro da cidade em total e abençoado silêncio. Atravessamos agora uma larga e longa avenida dos arredores, alinhada por prédios altos de um lado e outro. Ignoro-o — a luz só se fará quando, no dia da partida e fazendo este caminho em reverso para o aeroporto, a voltar a olhar à luz do sol —, mas é a avenida onde, durante o cerco da cidade, os snipers se entretinham a alvejar tudo quanto por ali passasse, vindo ou em direcção ao aeroporto: quem por ali transitava ao volante, era forçado a reclinar o banco do condutor e a guiar o mais próximo de deitado possível, para não ser visto através do vidro. Percorro-a em total inocência, apreciando o silêncio, a noite cálida e o ar civilizado e urbano da cidade à qual acabo de chegar. O automóvel ginga agora por entre ruas mais estreitas e, sem aviso, Emin encosta à porta de um edifício de linhas modernas. "Hotel Europa", diz. 

Além da porta giratória da entrada, o som de música é omnipresente e omnipotente e na amálgama confusa de estímulos de quem acaba de entrar num cenário totalmente novo, percebo vir de uma sala adjacente à recepção, onde decorre grande festança. Homens em roupa aprimorada, mulheres enfarpeladas em tecidos lustrosos, entram e saem da música, os olhos brilhantes, o fácies rosado e, certamente, muito que contar. Será assim por todas as noites que ali permanecerei. Os habitantes de Sarajevo festejam tudo e um par de botas. São onze e meia da noite quando o elevador me despeja no corredor silencioso e de paredes oblíquas do quinto andar, onde fica o meu quarto. Há precisamente doze horas que fechei a porta de casa e desci a rua até à paragem das camionetes. Foi rápido, chegar à outra ponta da Europa, embora a sensação interna seja a de que ando nisto há dias. Ao percorrer-se muitas paisagens o tempo psicológico espessa-se com uma sombra, longa como a de um ocaso.

5. À primeira impressão, Sarajevo lembra uma cidade da Alemanha, particularmente do Leste, com a sua arquitectura um tanto austera e as suas ruas amplas e de esquadrias rectas. É claro que essa sensação é rapidamente baralhada pela Cidade Velha, onde as ruas estreitas, o ar de bazar do comércio e a abundância de mesquitas, nos fazem compreender que — embora num país da Europa Central — estamos já na calha do Oriente. Na cidade há mesquitas espalhadas por todo o lado, tantas como abundam as igrejas em países católicos do Sul. São convidativas, nos seus pátios amplos e cuidados, nos seus jardins (onde as rosas são presença obrigatória), nos seus sons de água que jorra sob árvores frondosas, na voz grave e bem modulada que — mais notória ao ar rarefeito do amanhecer e do entardecer — se eleva da antena afilada do minarete e quase flui num cântico ao invocar os fiéis à prece. Os seus domínios, os seus jardins, são muito frequentadas quer por crentes quer por simples curiosos, e as escadas que dão acesso ao interior do templo, no espaço deixado vago pelo calçado de quem foi rezar, exibem em permanência gente, gente que conversa, fala ao telemóvel ou simplesmente aprecia a existência sentada numa das grandes tapeçarias que revestem o chão das arcadas exteriores. 

A população da Bósnia-Herzegovina é maioritariamente muçulmana, mas, para quem tender para uma outra crença, há também templos cristãos ortodoxos e uma imponente igreja católica, a Catedral do Sagrado Coração de Jesus, aos pés da qual,  escassos metros ao fundo da escadaria, uma rosa de Sarajevo escarifica o cimento do passeio. As rosas de Sarajevo são memoriais gerados pela própria guerra e não passam de cicatrizes deixadas no chão pela explosão de um morteiro, um padrão sempre ironicamente floral cujas reentrâncias foram retintas com resina rubra, a cor do sangue que por ali se verteu em abundância há trinta anos atrás. Para além dos três museus que lhe foram dedicados*, a guerra, numa discrição que se torna por vezes silenciosamente gritante, está presente por toda a cidade e não de forma menos importante nas ruas e na atitude dos habitantes. 

As paredes dos prédios — não há rua, praça ou avenida que a isso escape — estão, como a memória cutânea de uma epidemia de bexigas loucas, pejadas das feridas circulares que ali deixou a metralha, e a cada quarteirão pode encontrar-se, embutida na fachada de um prédio, uma fiada de pequenas tabletes de mármore, cada uma delas tendo um nome e uma data gravado: representam as pessoas que ali foram mortas ou executadas sumariamente nos gritantemente recentes anos 90 do século passado, isto é: qualquer habitante da cidade com mais de trinta anos de idade foi testemunha vital desse passado presente. Estes santuários estão, em permanência, ornados com ramos e coroas de flores frescas e há quem pare um segundo ou se benza ao passar. De Abril de 1992 a Fevereiro de 1996, praticamente quatro anos, Sarajevo esteve sujeita a um cerco dos exércitos e milícias sérvias e durante esse cerco foram mortas 11.541, cerca de dez por dia. Desgraçadamente, a cidade é fácil de isolar e manter em isolamento, compreende-se bem isso olhando as montanhas verdejantes que a cercam como duas metades de uma concha: Sarajevo foi erigida num vale profundo, atravessado por um rio de águas pouco profundas, e não há modo de escapar dali a não ser pelo ar ou pelas sendas, sinuosas e alcantiladas, das montanhas. Uma ratoeira verdejante.

Durante essa desgraçada eternidade, a cidade ficou sem luz, sem água, sem comida, sem correio, sem telefone, arriscando-se à roleta da morte a tiro — pelos snipers que se acoitavam nos montes em volta — de cada vez que se arriscava a sair de casa em busca da sobrevivência. Aliás, não era sequer necessário sair de casa, são inúmeras as histórias de pessoas executadas apenas por se aproximarem da janela de casa, pois, com o passar dos dias e o tédio da espera, os franco-atiradores tornaram-se exímios em acertar em tudo quanto mexia, fossem pessoas ou cães que, nesses dias de negra memória, perdidos os donos, se foram constituindo em matilhas, atacando pessoas e animais, devorando cadáveres, transmitindo a raiva. A sociologia da desgraça permitiu mesmo inferir que, mesmo quando actuando numa estratégia de alcateia, os antigos animais domésticos mantinham os hábitos da raça e os pastores alemães preferiam visar o pescoço e os cães de água morder as pernas dos fugitivos, até que tombassem e ficassem acessíveis aos colmilhos de todos.

Mas o que talvez mais me tenha surpreendido, nesse encantamento que a cidade parece verter na nossa sensibilidade e desejo de aí regressar, foi a atitude geral da população perante o seu espaço: Sarajevo não pára, dia e noite a cidade move-se pelas avenidas e ruas, e os restaurantes, cafés, esplanadas, bancos de jardim ou os que existem sob as montras das lojas e em que as pessoas se sentam a ver quem passa, estão em permanência cheios de gente. É claro que alguns destes são turistas, vindos de todas as partes do mundo, parte deles de países árabes do Golfo Pérsico (como Arábia Saudita e Kuwait), o que contribui para engrossar o número de mulheres veladas, mas, estas ao contrário dos véus leves e coloridos das bósnias, que deixam faces à mercê dos apreciadores de rostos, estão entrouxadas em
panos de um negro surrado de batina eclesiástica, que lhes cobre corpo e cabeça, a ocultação aprimorada pela máscara da mesma cor que lhes tapa boca e nariz. Ao lado destes cartuchos ambulantes, gozando a tarde, passeiam maridos e pais, vestidos em leves trajos ocidentais como se nada tivessem a ver com aquele filme que patrocinam... Sim, mas como estava em transe de dizer, os turistas não justificam, nem de longe, tanta abundância de gente nas ruas, de manhã, à tarde, à noite, até que tudo fecha e se tenha mesmo de ir dormir. Sarajevo sofre de claustrofobia, Sarajevo esteve tempo por demais (quatro anos) enclausurada entre paredes, vendo a gente morrer, a cidade a definhar, e persegue o tempo perdido, anseia encher os pulmões com aquele ar perfumado pelas tílias, pelo cheiro a café no ar, quer perder-se pelas delícias das confeitarias (que os bósnios são doentiamente adeptos dos seus doces maravilhosos e ostensivamente mélicos), Sarajevo quer palmilhar as ruas até gastar os sapatos, quer esbater pela usura das solas as rosas estropiadas deixadas nos passeios pelos morteiros. Sarajevo, como uma criança que se entretém e esquece no quintal, acha ser ainda muito cedo para entrar; Sarajevo, agora que reencontrou de novo o seu cantinho, não quer ir
para casa.  

6. O nosso hotel fica na Vladislava Skarica, a uma centena de metros da cidade velha e mesmo ao lado do antigo Caravanserai do século XVI, construído em 1551 pelo Império Otomano para abrigo das caravanas que circulavam entre o sul e o norte, entre o oriente e o ocidente. E a solução mais simples para a gente buscar o que quer visitar ou encontrar é ir movendo-se pela cidade, procurando e associando referências que não se estejam presas aos nomes e às placas das ruas, pois esta língua é completamente impenetrável: não se percebe uma palavra, a esmagadora maioria dos habitantes não fala inglês, francês, espanhol ou seja o que for que a gente entenda, e a própria grafia das palavras é comicamente louca, usando acentos agudos em consoantes ou  circunflexos de pernas para o ar! Ficam aqui — como uma indigna ilustração do que tento explicar — os nomes de alguns dos criminosos dos massacres sobre a Bósnia, que no total ceifaram a vida a mais de 100.000 pessoas, e que, afortunadamente, cumprem abençoada pena perpétua em cadeias inglesas, após a condenação do Tribunal Penal Internacional, algo que não estou seguro veríamos acontecer nos dias de hoje: Ratko Mladić, Radovan Karadžić, Vujadin Popović, Slobodan Milošević (morto enquanto cumpria pena).

Entre a fachada principal do hotel e a parede de pedra e tijolo do Caravanserai expande-se uma grande esplanada; pertence ao hotel, mas está aberta à estadia e passagem do público em geral. Quando ali chegámos hoje, vindos de mais um volteio pela Cidade Velha, uma das extremidades do espaço está tomada por um ajuntamento falador e vestido a rigor: é um casamento e, antes de passar ao interior do hotel para o prato principal das cerimónias, gozam um beberete no exterior, que a tarde morrente vai esplendorosa. Sentamo-nos a descansar, a ver o que se passa... Mal tínhamos acabado de pedir uma bebida ao empregado, o som de um acordeão — magnificamente executado e criando uma tensão de espera no ouvinte, pois algo vai ter de resultar dali — eleva-se no ar como uma cobra ondeante saindo do seu cesto; faz lembrar Piazzolla, mas em modalidade mais quente e serpenteante.
E logo se inaugura uma batida de percussão e os convidados começam a bater palmas cadenciadas e a agrupar-se num espaço sem mesas, praticamente em cima do passeio público. A música continua, ganha balanço e rola agora como um comboio que já deixou os muros da estação. As pessoas entrelaçam as mãos e dão de dançar em círculo, com pequenos passos laterais, travados, fazendo lembrar danças gregas. A coisa é tão magnífica, surgiu de modo tão espontâneo perante os olhos de todos, que me levanto da mesa e aproximo, máquina fotográfica em riste, pronta a tentar registar um pouco daquela prenda, mas um pouco receoso de poder estar a ser intrusivo. Porém, ninguém me liga a dança continua.


Vala comum secundária em Srebrenica. © Fotografia: Tarik Samarah (Galerija 11/07/95). 





*a) Galeria 11/07/95, sobre o genocídio perpetrado pelos sérvios em Srebrenica, e cujo objectivo era eliminar todos os bósnios muçulmanos do século masculino, independentemente da idade. O massacre principal, mais de oito mil mortos, ocorreu no dia 11 de Julho de 1995, há exactamente 30 anos, sob a inação e o olhar passivo dos militares holandeses da força da intervenção da ONU presente no terreno e encarregada de proteger a população que deixou fosse massacrada; b) Museu do Cerco de Sarajevo; c) Museu do Genocídio e dos Crimes Contra a Humanidade (1992-1995).

Sobre Sarajevo, e a guerra dos anos 90, recomendo igualmente A Questão de Bruno, de Aleksandar Hemon (editora Asa, 2002), um romance dedicado a Sarajevo, de onde o autor é natural.  

© Fotografias, excepto quando indicado de outro modo, de pedro serrano, Sarajevo, Junho 2025. 


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