Era pouco depois do almoço e estávamos
os três na varanda à entrada da casa a conversar uma conversa leve de Sábado,
quando ela passou ao fundo dos degraus atravessando o quintal de sul para
norte.
Talvez houvesse algo de furtivo no seu
passar que me fez olhá-la com mais atenção e reparar que, de inesperado, só
aquele curto tufo em forma de leque que lhe sobrava na boca.
De repente percebi o que seria e
gritei ao Ricardo que estava perto dos degraus e a conseguiu apanhar. Apanhada,
não teve outro remédio que não fosse abrir a boca e deixar cair o pequeno
pássaro que transportava aprisionado entre os dentes. O animalzinho, vivo por
uma pena, era muito jovem, possivelmente ave caída do ninho sem saber voar ou
apanhada pela gata logo à primeira tentativa de voo, mesmo antes de se lhe
revelar o impulso ascensional que contraria quem tomba. Salvo, mantinha-se
muito quieto na minha mão, sem tentar fugir ou mexer-se, um pânico instalado no
bater descompassado do coração e nos olhos negros que brilhavam de terror.
“Mia, sua estúpida”, invectivei,
atirando-lhe um torrão de terra para a manter longe de nós, já que rondava
vigiando as nossas distrações e tentando terminar a chacina. Como um desenho
animado, ela fugiu a toda a velocidade, saltando o muro para a vizinha, onde,
com ar despeitado, se colocou em pose de esfinge sob um canteiro de
estrelícias.
Mas nem meia-hora tinha passado e o
passarinho, após um estertor que lhe deixou as patas enclavinhadas e sujou
modestamente a palma da minha mão, finou-se, o brilho dos olhos a recuar para o
desconhecido e um corpo imóvel, à mercê de todos os movimentos que eu lhe
imprimia a tentar detectar vida. Acabámos por o enterrar, ainda morno, na cova
morna que lhe cavámos sob uma roseira vermelha. Levou uma pétala como almofada.
Sacudi as mãos de terra, olhei: a gata continuava, aninhada e amuada, sob as
estrelícias da Dona Luísa.
Ao anoitecer saí para fechar as
venezianas e encontrei na soleira da porta outro cadáver: desta vez era um
pardal cinzento, adulto, com o pescoço destroçado e um colar sanguinolento,
como que a demonstrar que ainda era capaz de cumprir o seu destino de caçadora
e que eu escusava de o tentar contrariar.
A noite esfriou muito e, apesar de
estarmos em Maio, acendi a lareira por uma última vez e, cada um no seu sofá,
fizemos as pazes e esquecemos, por entre o crepitar da lenha, os alvoroços
desse dia.
© Fotografia de Ricardo Ventura, Maio 2013.
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