27 maio 2013

A ASSASSINA E O COVEIRO


Era pouco depois do almoço e estávamos os três na varanda à entrada da casa a conversar uma conversa leve de Sábado, quando ela passou ao fundo dos degraus atravessando o quintal de sul para norte.
Talvez houvesse algo de furtivo no seu passar que me fez olhá-la com mais atenção e reparar que, de inesperado, só aquele curto tufo em forma de leque que lhe sobrava na boca.
De repente percebi o que seria e gritei ao Ricardo que estava perto dos degraus e a conseguiu apanhar. Apanhada, não teve outro remédio que não fosse abrir a boca e deixar cair o pequeno pássaro que transportava aprisionado entre os dentes. O animalzinho, vivo por uma pena, era muito jovem, possivelmente ave caída do ninho sem saber voar ou apanhada pela gata logo à primeira tentativa de voo, mesmo antes de se lhe revelar o impulso ascensional que contraria quem tomba. Salvo, mantinha-se muito quieto na minha mão, sem tentar fugir ou mexer-se, um pânico instalado no bater descompassado do coração e nos olhos negros que brilhavam de terror.
“Mia, sua estúpida”, invectivei, atirando-lhe um torrão de terra para a manter longe de nós, já que rondava vigiando as nossas distrações e tentando terminar a chacina. Como um desenho animado, ela fugiu a toda a velocidade, saltando o muro para a vizinha, onde, com ar despeitado, se colocou em pose de esfinge sob um canteiro de estrelícias.
Mas nem meia-hora tinha passado e o passarinho, após um estertor que lhe deixou as patas enclavinhadas e sujou modestamente a palma da minha mão, finou-se, o brilho dos olhos a recuar para o desconhecido e um corpo imóvel, à mercê de todos os movimentos que eu lhe imprimia a tentar detectar vida. Acabámos por o enterrar, ainda morno, na cova morna que lhe cavámos sob uma roseira vermelha. Levou uma pétala como almofada. Sacudi as mãos de terra, olhei: a gata continuava, aninhada e amuada, sob as estrelícias da Dona Luísa.
Ao anoitecer saí para fechar as venezianas e encontrei na soleira da porta outro cadáver: desta vez era um pardal cinzento, adulto, com o pescoço destroçado e um colar sanguinolento, como que a demonstrar que ainda era capaz de cumprir o seu destino de caçadora e que eu escusava de o tentar contrariar.
A noite esfriou muito e, apesar de estarmos em Maio, acendi a lareira por uma última vez e, cada um no seu sofá, fizemos as pazes e esquecemos, por entre o crepitar da lenha, os alvoroços desse dia.
© Fotografia de Ricardo Ventura, Maio 2013.

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