08 março 2011

PESO RELATIVO


©Himalayan Academy Publications, Kapaa, Kauai, Hawaii.
Na Índia, a vaca é um animal sagrado. Era o transporte do deus Shiva e é, para os hindus, um animal puro. Não pode ser morta ou ferida e é-lhe permitido circular por onde muito bem entender sem ser incomodada.
Em consequência, há na Índia mais de 250 milhões de vacas a viver livremente. Em cidades como Nova Deli ou Mumbai (a antiga Bombaim, com dezassete milhões de habitantes), as vacas circulam alegremente no meio da rua, nas estradas e auto-estradas e os condutores, sem nunca perder paciência, contornam-nas como podem e o máximo que se permitem, quando o contornar se torna inviável, é exercer alguma pressão psicológica sobre elas, empurrando-as pela aproximação do veículo ou, se o método falha, sair do carro e enxotar brandamente o bicho à mão. Cientes do seu estatuto, durante todo o processo elas mantêm uma pachorrentice hippie, fitando o interlocutor com uma plácida expressão de táss bem e dando a entender que talvez se movam quando lhes apetecer.
A única excepção territorial a esta veneração é Goa, ou não tivessem lá estado os portugueses quase quatrocentos anos, onde a carne de vaca integra a ementa dos restaurantes especializados em cozinha goesa, uma gastronomia muito respeitada na Índia e na qual a influência portuguesa refogou tão fundo que existe um equivalente da cabidela (o sarapatel).
Mas não se pense, lá porque se pode meter um cutelo no cachaço do bicho, que a vaca é maltratada em Goa ou que circula ali em menor liberdade do que no resto do país. Não, andam por todo o lado, incluindo a praia onde, com alguma sorte, é possível vê-las a abrigar-se do sol intenso sob o guarda-sol de algum turista, cuja expressão oscila entre o siderado e o aterrado.
Um fim de tarde, deitados nas nossas espreguiçadeiras, estávamos muito reflexivamente a olhar o pôr do sol sobre o mar Arábico, quando entrou no nosso campo de visão, tapando o astro por momentos, uma vaca, conduzida por dois rapazes. A cena era tão National Geographic Magazine que me apressei a pegar na máquina fotográfica e a disparar. A vaca foi passando, eu fiquei ali a meditar a que propósito serviria aquele grande pedaço de madeira que o animal levava pendurado sob o pescoço, como se fosse uma canga no local errado, e que lhe emprestava um andar tão cabisbaixo...
Pragmáticos, os deuses indianos, responderam à minha interrogação com rapidez e recorrendo a exemplo prático, o que evidencia que, apesar dos quatro ou cinco milhares de anos que já levam, se têm adaptado às modernas teorias pedagógicas. Menos de dois minutos depois, uma nova vaca surgiu no meu campo visual, caminhando na areia molhada como a anterior e, tal como a outra, seguida de dois rapazes que a conduziam. A única diferença notável era a de que esta nova vaca não tinha nenhum peso pendurado ao pescoço e movia-se leve como nos tempos de Shiva. Mas, de repente, algo mudou no andar pausado do quadrúpede e, sem motivo aparente, a vaca começou a acelerar o passo, depois a trotar e, em breve, galopava pela praia fora, obrigando os dois rapazes a uma correria inútil, pois ela deixou de os ter por completo em consideração. Apesar do pânico que se instalou entre as espreguiçadeiras, as cadeiras e as toalhas de praia, tudo acabou na beatitude que leva Goa a ter como slogan a palavra portuguesa sossegado. Após alguns zigzags pela areia fora e de ter apontado na direcção dos turistas, a grande vaca parou a meio caminho entre o mar e as esplanadas e ficou ali especada, a bovina mente talvez concluindo que, agora que o sol se afundara nas águas, já não era necessário resguardar-se em nenhum guarda-sol.
Esta acalmia vespertina tirou um grande peso dos ombros de toda a gente. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Goa (Índia), Janeiro 2011.  







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