Quase o adivinhei quando, já no final,
o vi dirigir-se ao púlpito e desdobrar duas folhas de papel A4... Duas folhas,
a serem ditas por um filho, num ambiente tão emotivo – o tipo não ia conseguir.
Antes disso, os netos mais velhos
tinham subido ao mesmo púlpito e lido algumas passagens dos livros sagrados de
um modo impecável, numa dicção clara, pausada, serena. Mas eram apenas algumas
linhas de um texto impessoal, escrito por terceiros há uns milhares de anos!
Ele deve ter pensado que iria conseguir o mesmo desempenho, esqueceu-se que as
suas eram palavras íntimas, que era um ror de duas páginas...
Por mim, já tinha tido tempo para tomar
o pulso ao ambiente emocional, estava na quarta ou quinta fila e dali via tudo
o que se passava: o padre lá à frente, o caixão entre ele e a assistência; a
família mais chegada nas primeiras duas filas de bancos, à direita do padre.
Havia, do outro lado da nave, um violoncelo e uma guitarra acústica que, em
pontos determinados, tocavam qualquer coisa; a meio da cerimónia fez-se ouvir a
belíssima Área para violoncelo em sol,
de Bach. E quando a música nos brindava as lágrimas brotavam, silenciosas e
lentas, nos olhos das filhas, das netas; eu próprio – remotamente ligado ao
grosso daquele rebanho – dava comigo a olhar para a abóboda da Basílica a
tentar retê-las no bordo da pálpebra inferior.
Engraçado como sendo a música algo tão
abstracto se presta tão bem e de forma tão imediata a canalizar emoções, a
servir-lhes de transporte. Estas e outas coisas soltas ia alinhavando à medida
que o meu pensamento fazia gincana por entre as palavras do padre sobre o
defunto e fugia, ascendia, ascendia àquele espaço imenso por cima das nossas
cabeças.
Sim, estivera com ele e com a mulher
(Dona Maria Helena) várias vezes em casa da minha sogra, sobretudo em natais –
durante alguns anos eles costumavam ir lá uma das noites e eu via-os sempre
chegar com uma curiosidade mesclada de compaixão, pois ouvia-se dizer que no
outro dia, aquele em que não estavam ali
e ficavam em casa, comeriam como se fosse outro dia qualquer, podiam até mandar
vir piza pelo telefone! Quem se desalentava com esse desapego pela comida dos
pais era a filha Margarida, minha cunhada e um bom garfo por degeneração do ADN.
Sim, recordava-os dos encontros de
festa em Cascais, mas, curioso, a minha memória mais vívida dele datava da
China, há, exactamente, vinte anos atrás! Era Dezembro de 1993, eu acabara de
chegar, em trabalho. Nessa época Macau ainda era território português e não era
servido pelo aeroporto que os portugueses construiriam antes de passar aquele
pedaço de terra a Pequim; tornava-se necessário apanhar um jetfoil entre Hong Kong e Macau. Estava precisamente no porto de
Hong Kong à espera do ferry quando ouvi um ruído de pás de helicóptero ali ao
lado e um certo borburinho. E então vi-os aos dois, a ele e à Dona Maria Helena,
e percebi que eram o centro da agitação, compreendi serem eles que iam tomar
aquele transporte especial para Macau, posto à disposição do Provedor de Justiça
de Portugal. Ao reconhecerem-me na sala de espera, tão longe da sala de estar
de Cascais, ficaram tão surpreendidos como eu, quiseram saber ao que ia,
desejaram-me uma boa estadia e lá se foram por sobre o rio das Pérolas,
ascendendo, ascendendo...
Entretanto o padre dava por terminada
a cerimónia, perguntou se alguém da família queria dizer alguma coisa e o filho
subira ao púlpito, tirara do casaco uns papéis. Quando os desdobrou e percebi
que eram duas folhas quase adivinhei que... O texto era um visão muito pessoal,
quase íntima, do pai, do trajecto de vida, da mãe que morrera, também ela, há
três anos atrás... E depois aconteceu aquilo que acontece nestas situações e
que a vontade não é senhora de controlar ou contornar: uma mão de férreo veludo
aperta-nos a garganta e não há volta a dar, não se consegue continuar, como se
a emoção se concentrasse toda a afogar as cordas vocais. Ele ainda tentou chegar
até ao fim, mas as duas irmãs avançavam já até ao púlpito e, ladeando o irmão
sufocado, uma delas concluiu as palavras por dizer.
Título tirado do livro de Job: “Job tomou a palavra e disse: ‘Quem dera
que as minhas palavras fossem escritas num livro, ou gravadas em bronze com
estilete de ferro, ou esculpidas em pedra para sempre!’.”
© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa, Fevereiro 2014.
Beijo grande, Pedro! M
ResponderEliminar@ M. Besito
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