O QUE TEM O PALÁCIO DE CRISTAL A VER COM ESPINHO? Para mim, não tinha nada até a um baile de gala da Queima das
Fitas onde, andava eu no primeiro ano de Medicina e ela ainda no liceu, conheci
uma rapariga chamada João Pinto Basto.
De entre os milhares de pessoas que
nessa noite enxameavam sob a cúpula do Palácio ela foi meu par num rosário de
danças das canções que debitava o conjunto que abrilhantava o evento e, de um
modo a que não recordo detalhes, demos uma oportunidade de continuidade à noite
pela troca de números de telefone. Costa Cabral, onde ela morava, não era zona
que eu frequentasse e, sem um cordão umbilical qualquer, não seria provável
voltar a encontrá-la pela cidade pois não havia ninguém que a conhecesse que eu
conhecesse e vice versa.
Mas o que é certo é que evoluímos
rapidamente da cristalina situação de completos desconhecidos para a de amigos
e, para além da correspondência que íamos trocando, no Verão seguinte dei
comigo em Espinho, pois ela costumava veranear por ali e convidou-me a visitá-la.
Às vezes ia até lá pelo método de me pôr na estrada de polegar no ar e se havia
dias em que isso podia ser simples e directo, era outras vezes complicado e conseguido
à custa de prestações no trajecto. Assim volveu-se mais prático apanhar o
comboio em São Bento, que a viagem, para além de rápida, era interessante.
Sempre gostei de comboios, do cheiro a pó de carvão, mesmo quando são
eléctricos, dos ambientes associados; das linhas estrábicas que se estendem a
perder de vista; do manquejar das rodas sobre os trilhos e, mais do que tudo,
da mudança de lugar que proporcionam.
Porto-Gaia-Valadares-Madalena-Miramar-Aguda-Granja-Espinho.
Espinho, uma terra de pescadores seccionada
por um comboio, só podia ser uma cidade estranha, sempre assim a achara desde
os tempos em que, ainda muito pequeno, era arrastado até lá a visitar os
familiares que, em ousadia anual, deixavam a Beira e ali renovavam casa para banhos
numa praia cronicamente tornada infrequentával pela nortada e pelas próprias
águas do mar, geladas e de correntes perigosas. Mas isso era o menos, havia o
ar marítimo, havia os cafés ao longo da rua principal, havia o casino, havia o
picadeiro, a linha de caminho de ferro que atravessava a cidade e, pelo
alvoroço ferroviário, era ela própria uma atração.
Foi então com uma sensação de
liberdade adulta, uma leveza transitária, que vi Espinho com uns olhos
diferentes dos do macerado miúdo visitando tios que assobiavam nas vogais e nos
recebiam em casas com mobílias que não lhes pertenciam; moradas soturnas de
soalhos rangentes, vidraças tristonhas com vista para as ervas daninhas do
cascalho da linha de comboio e aparadores torneados de onde, à hora do lanche,
surgia a tigela de marmelada que viajara da serra até ao mar.
Com a João não havia marmelada e à
hora do lanche, o mais tardar, regressava ela à casa que a família alugava numa
rua de que já não recordo o algarismo, pois, nesse único particular, Espinho
era como Nova York e as ruas, ao invés de serem apelidadas com nomes de
comendadores ou políticos pulverulentos, eram numeradas. Não me lembro também
de alguma vez termos idos juntos molhar os pés, limitávamo-nos a passear contentes
em companhia, a sentarmo-nos nalguma esplanada a conversar.
E de qualquer sítio de onde viéssemos
ou para onde fôssemos lá estava a linha do caminho de ferro contida entre
grades e, como ponto de referência do centro nevrálgico da agitação urbana, a
passerelle, muito concorrida, pois passando por sobre os carris, permitia aos
peões circunvagar de um lado para o outro da cidade sem ter de esperar que os
comboios passassem e as cancelas se abrissem.
Por esses dias imaginei escrever uma
história que se passaria numa cidade que não se chamava Espinho, mas que teria
uma linha de comboio a fazer-lhe risca ao meio; uma passagem aérea para peões
com degraus de madeira; e, numa casa vazia, um telefone que, esquecido nas
tábuas do soalho, tocava insistentemente sem que ninguém atendesse.
Porquê a casa vazia, porquê o
telefone, quem marcava esse número e como terminava a história? Não sei, nunca
saí desse momento que retinia como as campainhas das passagens de nível, mas
foi essa sensação, desolada e paralisada no tempo, que Espinho me inspirou.
Provavelmente o mesmo não diriam os
meus pais que, dois anos após ter terminado a Segunda Guerra Mundial, olham a
máquina fotográfica no conforto abrigado da nortada das risquinhas de uma
barraca de praia em Espinho. O meu pai, trigueiro e peludo, que, como as minhas
tias da marmelada, vinha somente dos lados de Viseu parece chegado de Marrocos
na véspera, mas a minha mãe, nos seus vinte anos e clara como convinha a uma
praia do norte, parece demasiado etérea para pensar nisso.
Fotografias: (1) Espinho, por volta de 1930; (2) Espinho, 1946. Fotógrafos desconhecidos.
Tão bonito de ler.
ResponderEliminar@ Anónimo: Obrigado pelo comentário
ResponderEliminarNão precisa de me agradecer, eu é que lhe agradeço, sabe porquê?
ResponderEliminarAo lê-lo, até no Inverno "fico mais nova"
@ Anónima, isso é sempre bom de saber!
ResponderEliminarO som do telefone na casa vazia, persistente, insistente acompanhado pelo som das rodas de ferro sobre os carris com o vento a soprar ligeiro sobre as carruagens que ora corriam lentas, ora apressadas ou com os freixos a chiar e a gemer...
ResponderEliminarSilêncio na cidade, mas um silêncio barulhento, repetitivo, quase aflito, todo o dia e já pela noite dentro, despertando bem cedo, quando ainda não tinha nascido bem a manhã...
Uma cidade que permanecia na nossa cabeça mesmo quando já nos havíamos afastado dela.
Basta recordar, para ressoar de novo o comboio...a campainha...o comboio...a campainha...o mar encrespado.
Cada recanto tem seu encanto. Alguns ficam para sempre memorizados e só mudam por fora. Cá dentro de nós é difícil alterar.
Abraço,
Dida/Flordeliz
*freio
ResponderEliminar@ Dida/Flordeliz, Obrigado pelo seu comentário. Abraço
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