03 outubro 2015

UM MUNDO MELHOR

A sede da Ordem dos Médicos funciona provisoriamente em instalações cedidas pela farmácia Rama.
As instalações, sala e pequeno anexo, são, respectivamente, a antiga marquise e cozinha de uma velha moradia colonial, uma daquelas alegres casinhas que os portugueses de classe média construíam nos trópicos, um novo lar, a relembrar na traça e arrebiques as casas que tinham deixado, mas adaptando-se já ao exílio no telhado prolongado em alpendre – a defender os habitantes do sol impiedoso – ou nas paredes perfuradas para promover toda a ventilação possível.
A entrada, couraçada por uma espessa porta de metal e um grosso cadeado, deita para um pátio em que ainda se reconhece o coradouro e os arrumos, e onde agora uma família de pai, mãe e filho fazem a extensa parcela ao ar livre da sua vida. Há também um altivo garnisé macho e respectiva franga. Curiosa, como todas as do seu sexo, esta aparece às vezes na ombreira da porta a espreitar as reuniões, enquanto o companheiro, indignado, obriga a pausas nos trabalhos até que o seu canto estridente deixe de se sobrepor aos diálogos.
Já passa das quatro da tarde e enquanto espero que cheguem os outros, sento-me num banco de madeira que existe no pátio, vizinho da esteira onde o locatário e filhito dormem a sesta e um dos rapazes que apoia o funcionamento da Ordem, às devidas horas e depois de lavar os pés com a água de uma garrafa, se ajoelha de empréstimo, virado a leste, para dirigir a Alá as suas preces.
Olho noutra direcção, a resguardar a sua intimidade: do lado de lá da rua é o hospital principal do país e entre mim e ele, a um metro do muro, na berma da rua sem passeio, amontoa-se, a céu aberto, o lixo das redondezas. Com excepção dos resíduos de tipo IV (radioactivo, quimioterapia e outros venenos classificados), todo o restante lixo hospitalar vem parar a lixeiras destas, onde se entrelaça ao lixo doméstico, pelo que é possível ver restos humanos, como tripas, dedos,  ou pernas amputadas, a serem violentamente negociados entre os cães e os abutres que vasculham o lixo da cidade.
“Hoje está um calor do caraças...”, desabafo a T., que chegou agora, como se ontem ou anteontem tivesse estado fresco.
“Yá, é das chuvas... Viste o que choveu ontem à noite? A água cai no chão, encharca, depois evapora com o calor, cai mais água de cima e nós no meio a levar com aquilo tudo, sem ter para onde fugir!”
T. é muçulmano e, por isso ou até por isso, um tanto fatalista, embora essa característica não o impeça de esbracejar por um mundo melhor para o país dele. Sabe que é difícil, por vezes encolhe os ombros como se fosse impossível e o olhar cansa-se-lhe, entristece-se, a raiar a desistência. Mas não há volta a dar e estão a chegar outros para a reunião. Dentro da sala a luz é vermelha, tem a ver com a toalha encarnada sobre a comprida mesa de plástico que ocupa todo o espaço, com as cortinas que cobrem as janelas que separam a marquise do logradouro, onde o miúdo encheu e transporta um balde de água mais pesado do que ele, enquanto a mãe recolhe a roupa da corda e o pai atira grãos de arroz às galinhas.
Na sala, separada da farmácia por portas de madeira tristemente imóveis, cheira a remédio e uma solitária ventoinha espadana do tecto um abençoado ventinho, ameaçando fazer voar da mesa o papel solto no qual o miúdo dos vizinhos fez os trabalhos de casa da escola. 

A reunião acabou, os convidados dispersaram, lá fora o crepúsculo não trouxe o alívio que se espera dele e um calor húmido agride-nos como uma toalha molhada.
“Vamos tomar alguma coisa?”, proponho?
A umas dezenas de metros, numa rua de terra batida pontuada de mangueiras, o Comandante está sentado à sua esplanada como um soba destingido pelo sol. Dirige da cadeira todo o movimento do restaurante, dos numerosos empregados ao que há-de ver-se no ecrã de plasma amarrado a uma coluna, até às saudações que vai atirando a quem passa na rua. É alentejano, monárquico, destemperado, remoto descendente de Giraldo Giraldes – o Sem Pavor – e, apesar de ter jazigo reservado em Évora, está em África há tanto tempo, conhece-a tão bem, que não passa sem ela, sem o seu mato, as suas rolas, as suas pescarias; diria que sem a sua gente, embora se exprima – para padrões ocidentais sentimentalmente correctos – como um bruto.
“Levaram-me ontem à sua antiga quinta...”, resumo-lhe o meu passeio de Domingo à tarde.
“Ah, nem me fale nisso, aquilo já não é meu...”, responde ele no seu sotaque alentejano pausado e interrogativo, “esses cabrões roubaram-ma... vinte e nove milhões de francos para o caralho”, diz, abrangendo no esses o meu impecável acompanhante, médico e deputado da Assembleia Popular Nacional. T. ri-se, dá uma palmada amigável no ombro do outro.
Vamos sentar-nos na minha mesa predilecta, lá ao fundo, sob uma ventoinha, alegrada por uma toalha azul com uma miríade de figurinhas pretas. T. fala do Comandante com admiração e amizade. Por aqui toda a gente lhe conhece as idiossincrasias, a mansa loucura que insidiosamente embebe quem vive sozinho e longe dos da sua raça, e respeita a determinação, a iniciativa, o contributo do homem para o progresso local. T. aprecia os resistentes, o Comandante é desses. 
Lá longe, esparramado na sua cadeira, impedido de reagir rapidamente pelo porte volumoso, imponente como o dos hipopótamos do sul de que fala com temor e fascínio, o Comandante acabou de atirar uma das bases de palha entrançada onde se pousam os pratos ao gatito que anda por ali.
“Inácio, apanha aquilo por favor: o filho da puta do gato andava a ver se me caçava uma das lagartixas, coitaditas...”
Sorridente, Inácio, atravessa vagaroso o espaço e entra no canteiro a recuperar a rodela de palha.
O Comandante tem profundo apego às osgas que serpenteiam pelas traves do tecto da esplanada, pelos camaleões, por um sapo que canta no meio dos canteiros, a que se refere como o meu sapo e a quem gaba a beleza e utilidade.
“Ainda hoje de manhã o vi atravessar aqui o terraço, todo contente. Sabe que estes filhos da puta aqui têm medo de camaleões, os cabrões?”
“Ai, sim”, admiro-me, sentado em frente a ele, pois, ao fim de uma semana de chegado, distinguiu-me com um convite para acampar na mesa reservada, onde mais ninguém se pode sentar, onde sempre reside e come, partilhando-a apenas com alguns outros convidados, criteriosamente seleccionados entre brancos, pretos e mestiços.
“Sim! Acham que é bicho com feitiço ou assim... Divirto-me imenso a gozar as velhas: pego num e penduro-o numa orelha, ele fica ali, e elas todas fodidas, a resmungar...” E batendo com as mãos nas portentosas coxas, ri-se até às lágrimas, chama um dos empregados mais atados:
“Diz aqui ao senhor doutor o que faço eu com os camaleões...”
O homem, com o ar de quem se está a invocar assunto grave, confirma a história do brinco que muda de cor pendurado na orelha; eu pergunto o que acha ele disso.
“É muito perigoso...”, responde com a gravidade de quem teme pela vida do Comandante e até da sua, por andar perto e assistir a tais atrevimentos.
É aí, no café-restaurante, que amiúde encontro T. quando ali chego, sistematicamente à mesa do Comandante que, vendo-me frequentemente em companhia dele, comenta-o:
“Tipo muito sério e homem inteligente, homem competente. É um fula, sabia? Os fulas são gente séria, não são como a outra cambada de vigaristas e filhos da puta que por aí andam; alguns portugueses incluídos” E, baixando a voz, com comiseração: “Sabe que, durante a guerra civil, os cabrões de merda lhe mataram mais de vinte familiares chegados?”
Por trás do balcão, Inácio sorri o sorriso abrangente e caloroso de um Cristo perante os que não sabem o que dizem e Emília olha-me sem modificar a expressão, mas com uns olhos onde brilha um: “É assim, o meu patrão, que é que se há-de fazer...?” e há uma certa resistência, consciente e resignada, no modo como arrasta as chinelas e o andar no cumprimento das permanentes directrizes e interpelações do outro. Emília é de etnia Balanta e por isso animista, uma gente que, religiosamente falando, venera pedras, plantas e animais, pois tudo são manifestações divinas.
“Eu já te disse aí umas quarenta mil vezes que a colher é para estar fora do açucareiro, no prato, por causa da humidade... Mas vocês parece que não aprendem! Irra!”
Sentado lá ao fundo, como um branco recém-chegado, mirando, distraído, as aves raras da cooperação internacional que por ali param – e cuja presença faz com que o Comandante seja mais reservado nos comentários – sorrio, divertido, deixando cair para baixo da mesa pedacinhos de frango à cafreal, para proveito e delícia do gatito e da mãe, que vivem no recinto de casa e pucarinho.
“Doutor, os cabrões dos gatos estão a incomodá-lo? Inácio, vai ali enxotar os gajos...”
“Deixe estar”, interrompo, “gosto dos seus gatos...”
“Dos meus gatos?! Porra, eles não são meus, andam por aí...”, resmunga ele.
T. chegou e o Comandante, embora finja não se interessar, pergunta-lhe novidades da situação política: o país está – outra vez – sem Governo, a situação arrasta-se há dois meses e os dois principais partidos continuam sem se entender. T. suspira; andam ainda em conversações mas a coisa não dá em nada. O país todo parado, as pessoas exasperadas, indignadas, falam abertamente do tema: apaixonadamente, intensamente, ainda não foram atingidas pela indiferença da política que atacou o Ocidente. T., sentado à mesa do Comandante, rilhando uns rissóis de camarão com arroz de tomate, vai contando o que sabe, vai comentando o país, depois voa e fala do assunto enquadrando-o num contexto regional, a seguir plana para uma visão africana global; finalmente, numa abordagem  geoestratégica, fala agora da II Guerra Mundial, dos russos, dos europeus, dos americanos.
“E os militares”, pergunta alguém, “o que dizem eles?”
“Estão à espera, a ver o que dá...”
“Doutor, o senhor vai ver que isto ainda vai dar merda...”, confidencia o Comandante quando ficamos sozinhos. “Foi sempre assim; vai ver que isto não vai lá sem porrada, sem matarem três ou quatro gajos... E logo, os seus olhos vivos adquirem um brilho irónico, provocador:
“Depois quero ver como vai jantar, com os gajos aos tiros aqui na rua...”
“Acho que nessa altura é melhor o senhor mandar servir o jantar debaixo da mesa...”, digo, levantando-me e despedindo-me: “Até logo, obrigado por me ter cedido uma fatia da sua melancia...”
“Minha melancia?! Ora essa, a melancia está aí para os clientes...”
“Não foi o que a Emília me disse: quando lhe pedi ela disse-me que estava reservada para o patrão, que para nós, comuns mortais, só havia papaia e maracujá...”
“Emília...”, chamou o Comandante.
Mas Emília, avaliando com olhar rápido a premência do assunto, não se move: está entretida ao portão da esplanada a receber uma rapariga, que segura na mão um balde de plástico preto.
“É a Edi”, informa o Comandante com uma cintilação terna nos olhos, e logo esquecendo o momento anterior: “É quem cuida do porco da casa ali em frente, vem aqui buscar a lavagem... Coitadinha, tem uma variz enorme numa das pernas. Acha normal naquela idade, pode ser perigoso?”
“Numa perna só? Que idade tem ela?”
“Não sei, é muito nova, para aí uns... Ó Edi”, berra o Comandante, “anda aqui mostrar a tua perna a este senhor, que é médico...”
Muito envergonhada, a rapariga vem até à nossa mesa e reconheço-a no cacho de cabelos que lhe emolduram a face: tirei-lhe, logo num dos primeiros dias, uma fotografia que ficou uma beleza; quase por acaso, à queima-roupa; a cor de chocolate dela contra o rosado de um muro, as flores da camisola a contrastar com um fundo de verde das plantas locais. Por insistência repetida do Comandante, Edi arregaçou uma das pernas das calças elásticas e mostra-me a pele: tem, de facto, uma tremenda variz, unilateral, do joelho para cima, da grossura de um dedo, mas, descubro que já foi diagnosticada em Portugal, vai ser operada para o ano em sítio aconselhado e seguro.
“Uma moça como deve ser”, louvou o Comandante quando Edi se foi, “e, para além de trabalhar, estuda, sabe, anda a estudar...”
“Ai, sim, e estuda o quê? Com vinte e um anos já deve ter terminado o liceu... Andará na Universidade?”
Mas o Comandante não sabe, só sabe que toma conta do porco da Dona Cármen - um ex-combatente do PAIGC e antiga Ministra da Saúde, que mora ali em frente -, que tem a variz e que anda a estudar.
Chega T., para me buscar, e à entrada cumprimenta Emília com um beijo e grande familiaridade. À saída, pergunto:
“Conhece-la bem?”
“Sim, é sobrinha de um primo meu.”
“Vocês, aqui, são todos primos uns dos outros!”, exclamo, suportado na frequência com que o vejo abraçar, beijar, parar para falar com gente em todo o lado, desde colegas de profissão a empregados de restaurante ou humildes serventes dos ministérios.
T. está parado no meio da rua e, como não tem carro próprio, faz sinal a um dos numerosos táxis azuis que circulam por Bissau. Depois, comenta:
“Sim, somos todos mais ou menos família...”
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro/Outubro 2015.


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