A sede da Ordem dos Médicos funciona
provisoriamente em instalações cedidas pela farmácia Rama.
As instalações, sala e pequeno anexo,
são, respectivamente, a antiga marquise e cozinha de uma velha moradia
colonial, uma daquelas alegres casinhas que os portugueses de classe média
construíam nos trópicos, um novo lar, a relembrar na traça e arrebiques as
casas que tinham deixado, mas adaptando-se já ao exílio no telhado prolongado
em alpendre – a defender os habitantes do sol impiedoso – ou nas paredes perfuradas
para promover toda a ventilação possível.
A entrada, couraçada por uma espessa
porta de metal e um grosso cadeado, deita para um pátio em que ainda se
reconhece o coradouro e os arrumos, e onde agora uma família de pai, mãe e
filho fazem a extensa parcela ao ar livre da sua vida. Há também um altivo garnisé
macho e respectiva franga. Curiosa, como todas as do seu sexo, esta aparece às
vezes na ombreira da porta a espreitar as reuniões, enquanto o companheiro,
indignado, obriga a pausas nos trabalhos até que o seu canto estridente deixe
de se sobrepor aos diálogos.
Já passa das quatro da tarde e enquanto
espero que cheguem os outros, sento-me num banco de madeira que existe no
pátio, vizinho da esteira onde o locatário e filhito dormem a sesta e um dos rapazes
que apoia o funcionamento da Ordem, às devidas horas e depois de lavar os pés
com a água de uma garrafa, se ajoelha de empréstimo, virado a leste, para
dirigir a Alá as suas preces.
Olho noutra direcção, a resguardar a
sua intimidade: do lado de lá da rua é o hospital principal do país e entre mim
e ele, a um metro do muro, na berma da rua sem passeio, amontoa-se, a céu
aberto, o lixo das redondezas. Com excepção dos resíduos de tipo IV (radioactivo,
quimioterapia e outros venenos classificados), todo o restante lixo hospitalar
vem parar a lixeiras destas, onde se entrelaça ao lixo doméstico, pelo que é possível
ver restos humanos, como tripas, dedos, ou pernas amputadas, a serem violentamente
negociados entre os cães e os abutres que vasculham o lixo da cidade.
“Hoje está um calor do caraças...”,
desabafo a T., que chegou agora, como se ontem ou anteontem tivesse estado
fresco.
“Yá, é das chuvas... Viste o que
choveu ontem à noite? A água cai no chão, encharca, depois evapora com o calor,
cai mais água de cima e nós no meio a levar com aquilo tudo, sem ter para onde
fugir!”
T. é muçulmano e, por isso ou até por
isso, um tanto fatalista, embora essa característica não o impeça de esbracejar
por um mundo melhor para o país dele. Sabe que é difícil, por vezes encolhe os
ombros como se fosse impossível e o olhar cansa-se-lhe, entristece-se, a raiar
a desistência. Mas não há volta a dar e estão a chegar outros para a reunião.
Dentro da sala a luz é vermelha, tem a ver com a toalha encarnada sobre a
comprida mesa de plástico que ocupa todo o espaço, com as cortinas que cobrem
as janelas que separam a marquise do logradouro, onde o miúdo encheu e
transporta um balde de água mais pesado do que ele, enquanto a mãe recolhe a
roupa da corda e o pai atira grãos de arroz às galinhas.
Na sala, separada da farmácia por
portas de madeira tristemente imóveis, cheira a remédio e uma solitária
ventoinha espadana do tecto um abençoado ventinho, ameaçando fazer voar da mesa
o papel solto no qual o miúdo dos vizinhos fez os trabalhos de casa da
escola.
A reunião acabou, os convidados
dispersaram, lá fora o crepúsculo não trouxe o alívio que se espera dele e um
calor húmido agride-nos como uma toalha molhada.
“Vamos tomar alguma coisa?”, proponho?
A umas dezenas de metros, numa rua de
terra batida pontuada de mangueiras, o Comandante está sentado à sua esplanada
como um soba destingido pelo sol. Dirige da cadeira todo o movimento do
restaurante, dos numerosos empregados ao que há-de ver-se no ecrã de plasma
amarrado a uma coluna, até às saudações que vai atirando a quem passa na rua. É
alentejano, monárquico, destemperado, remoto descendente de Giraldo Giraldes –
o Sem Pavor – e, apesar de ter jazigo reservado em Évora, está em África há
tanto tempo, conhece-a tão bem, que não passa sem ela, sem o seu mato, as suas
rolas, as suas pescarias; diria que sem a sua gente, embora se exprima – para
padrões ocidentais sentimentalmente correctos – como um bruto.
“Levaram-me ontem à sua antiga
quinta...”, resumo-lhe o meu passeio de Domingo à tarde.
“Ah, nem me fale nisso, aquilo já não
é meu...”, responde ele no seu sotaque alentejano pausado e interrogativo,
“esses cabrões roubaram-ma... vinte e nove milhões de francos para o caralho”,
diz, abrangendo no esses o meu impecável
acompanhante, médico e deputado da Assembleia Popular Nacional. T. ri-se, dá
uma palmada amigável no ombro do outro.
Vamos sentar-nos na minha mesa
predilecta, lá ao fundo, sob uma ventoinha, alegrada por uma toalha azul com
uma miríade de figurinhas pretas. T. fala do Comandante com admiração e
amizade. Por aqui toda a gente lhe conhece as idiossincrasias, a mansa loucura
que insidiosamente embebe quem vive sozinho e longe dos da sua raça, e respeita
a determinação, a iniciativa, o contributo do homem para o progresso local. T. aprecia os resistentes, o Comandante é desses.
Lá longe, esparramado na sua
cadeira, impedido de reagir rapidamente pelo porte volumoso, imponente como o
dos hipopótamos do sul de que fala com temor e fascínio, o Comandante acabou de
atirar uma das bases de palha entrançada onde se pousam os pratos ao gatito que
anda por ali.
“Inácio, apanha aquilo por favor: o
filho da puta do gato andava a ver se me caçava uma das lagartixas, coitaditas...”
Sorridente, Inácio, atravessa vagaroso
o espaço e entra no canteiro a recuperar a rodela de palha.
O Comandante tem profundo apego às
osgas que serpenteiam pelas traves do tecto da esplanada, pelos camaleões, por
um sapo que canta no meio dos canteiros, a que se refere como o meu sapo e a quem gaba a beleza e
utilidade.
“Ainda hoje de manhã o vi atravessar
aqui o terraço, todo contente. Sabe que estes filhos da puta aqui têm medo de
camaleões, os cabrões?”
“Ai, sim”, admiro-me, sentado em
frente a ele, pois, ao fim de uma semana de chegado, distinguiu-me com um
convite para acampar na mesa reservada, onde mais ninguém se pode sentar, onde
sempre reside e come, partilhando-a apenas com alguns outros convidados,
criteriosamente seleccionados entre brancos, pretos e mestiços.
“Sim! Acham que é bicho com feitiço ou
assim... Divirto-me imenso a gozar as velhas: pego num e penduro-o numa orelha,
ele fica ali, e elas todas fodidas, a resmungar...” E batendo com as mãos nas
portentosas coxas, ri-se até às lágrimas, chama um dos empregados mais atados:
“Diz aqui ao senhor doutor o que faço
eu com os camaleões...”
O homem, com o ar de quem se está a
invocar assunto grave, confirma a história do brinco que muda de cor pendurado
na orelha; eu pergunto o que acha ele disso.
“É muito perigoso...”, responde com a
gravidade de quem teme pela vida do Comandante e até da sua, por andar perto e
assistir a tais atrevimentos.
É aí, no café-restaurante, que amiúde encontro
T. quando ali chego, sistematicamente à mesa do Comandante que, vendo-me frequentemente em companhia dele,
comenta-o:
“Tipo muito sério e homem inteligente,
homem competente. É um fula, sabia? Os fulas são gente séria, não são como a
outra cambada de vigaristas e filhos da puta que por aí andam; alguns
portugueses incluídos” E, baixando a voz, com comiseração: “Sabe que, durante a
guerra civil, os cabrões de merda lhe mataram mais de vinte familiares
chegados?”
Por trás do balcão, Inácio sorri o
sorriso abrangente e caloroso de um Cristo perante os que não sabem o que dizem
e Emília olha-me sem modificar a expressão, mas com uns olhos onde brilha um:
“É assim, o meu patrão, que é que se há-de fazer...?” e há uma certa
resistência, consciente e resignada, no modo como arrasta as chinelas e o andar
no cumprimento das permanentes directrizes e interpelações do outro. Emília é de etnia Balanta e por isso animista, uma gente que, religiosamente falando, venera pedras, plantas e animais, pois tudo são manifestações divinas.
“Eu já te disse aí umas quarenta mil
vezes que a colher é para estar fora do açucareiro, no prato, por causa da
humidade... Mas vocês parece que não aprendem! Irra!”
Sentado lá ao fundo, como um branco
recém-chegado, mirando, distraído, as aves raras da cooperação internacional
que por ali param – e cuja presença faz com que o Comandante seja mais
reservado nos comentários – sorrio, divertido, deixando cair para baixo da mesa
pedacinhos de frango à cafreal, para proveito e delícia do gatito e da mãe, que
vivem no recinto de casa e pucarinho.
“Deixe estar”, interrompo, “gosto dos
seus gatos...”
“Dos meus gatos?! Porra, eles não são
meus, andam por aí...”, resmunga ele.
T. chegou e o Comandante, embora finja
não se interessar, pergunta-lhe novidades da situação política: o país está –
outra vez – sem Governo, a situação arrasta-se há dois meses e os dois
principais partidos continuam sem se entender. T. suspira; andam ainda em
conversações mas a coisa não dá em nada. O país todo parado, as pessoas exasperadas,
indignadas, falam abertamente do tema: apaixonadamente, intensamente, ainda não
foram atingidas pela indiferença da política que atacou o Ocidente. T., sentado
à mesa do Comandante, rilhando uns rissóis de camarão com arroz de tomate, vai
contando o que sabe, vai comentando o país, depois voa e fala do assunto enquadrando-o
num contexto regional, a seguir plana para uma visão africana global;
finalmente, numa abordagem geoestratégica,
fala agora da II Guerra Mundial, dos russos, dos europeus, dos americanos.
“E os militares”, pergunta alguém, “o
que dizem eles?”
“Estão à espera, a ver o que dá...”
“Doutor, o senhor vai ver que isto
ainda vai dar merda...”, confidencia o Comandante quando ficamos sozinhos. “Foi
sempre assim; vai ver que isto não vai lá sem porrada, sem matarem três ou
quatro gajos... E logo, os seus olhos vivos adquirem um brilho irónico,
provocador:
“Depois quero ver como vai jantar, com
os gajos aos tiros aqui na rua...”
“Acho que nessa altura é melhor o
senhor mandar servir o jantar debaixo da mesa...”, digo, levantando-me e
despedindo-me: “Até logo, obrigado por me ter cedido uma fatia da sua
melancia...”
“Minha melancia?! Ora essa, a melancia
está aí para os clientes...”
“Não foi o que a Emília me disse:
quando lhe pedi ela disse-me que estava reservada para o patrão, que para nós, comuns mortais, só havia papaia e maracujá...”
“Emília...”, chamou o Comandante.
Mas Emília, avaliando com olhar rápido
a premência do assunto, não se move: está entretida ao portão da esplanada a
receber uma rapariga, que segura na mão um balde de plástico preto.
“É a Edi”, informa o Comandante com uma
cintilação terna nos olhos, e logo esquecendo o momento anterior: “É quem cuida
do porco da casa ali em frente, vem aqui buscar a lavagem... Coitadinha, tem
uma variz enorme numa das pernas. Acha normal naquela idade, pode ser perigoso?”
“Numa perna só? Que idade tem ela?”
“Não sei, é muito nova, para aí uns...
Ó Edi”, berra o Comandante, “anda aqui mostrar a tua perna a este senhor, que é
médico...”
Muito envergonhada, a rapariga vem até
à nossa mesa e reconheço-a no cacho de cabelos que lhe emolduram a face:
tirei-lhe, logo num dos primeiros dias, uma fotografia que ficou uma beleza;
quase por acaso, à queima-roupa; a cor de chocolate dela contra o rosado de um
muro, as flores da camisola a contrastar com um fundo de verde das plantas
locais. Por insistência repetida do Comandante, Edi arregaçou uma das pernas
das calças elásticas e mostra-me a pele: tem, de facto, uma tremenda variz,
unilateral, do joelho para cima, da grossura de um dedo, mas, descubro que já
foi diagnosticada em Portugal, vai ser operada para o ano em sítio aconselhado
e seguro.
“Uma moça como deve ser”, louvou o
Comandante quando Edi se foi, “e, para além de trabalhar, estuda, sabe, anda a
estudar...”
“Ai, sim, e estuda o quê? Com vinte e
um anos já deve ter terminado o liceu... Andará na Universidade?”
Mas o Comandante não sabe, só sabe que
toma conta do porco da Dona Cármen - um ex-combatente do PAIGC e antiga Ministra da Saúde, que mora ali em frente -, que tem a variz e que anda a estudar.
Chega T., para me buscar, e à entrada
cumprimenta Emília com um beijo e grande familiaridade. À saída, pergunto:
“Conhece-la bem?”
“Sim, é sobrinha de um primo meu.”
“Vocês, aqui, são todos primos uns dos
outros!”, exclamo, suportado na frequência com que o vejo abraçar, beijar,
parar para falar com gente em todo o lado, desde colegas de profissão a
empregados de restaurante ou humildes serventes dos ministérios.
T. está parado no meio da rua e, como
não tem carro próprio, faz sinal a um dos numerosos táxis azuis que circulam
por Bissau. Depois, comenta:
“Sim, somos todos mais ou menos
família...”
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro/Outubro 2015.
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