O quarto de banho dos meus avós
maternos era uma divisão mais longa do que
larga e, embora só tivesse uma janela a iluminá-lo, rasgada aos pés da banheira
que ocupava toda a parede do fundo, era um aposento rico em claridade graças ao
reflexo da luz no seu revestimento em
mármore branco e rosado.
Para além de ser uma divisão embutida
no interior do próprio quarto, e por isso de acesso dificultado a partir do
exterior, era um espaço interdito a menores, ou seja aos meus primos, à minha
irmã e a mim, pelo que se tornava duplamente atraente atravessar o limiar da
porta em vidro martelado que o separava do quarto propriamente dito.
Legalmente, o pisar dessa fronteira só
se fazia quando a minha avó o estava a usar e um de nós, na esteira das saias da
mãe ou na companhia de uma tia, aproveitava a boleia da distracção de uma conversa
entre adultos para penetrar toda aquela brancura e pasmar para os enigmáticos
objectos cuja utilidade associávamos difusamente às práticas irracionais da
gente grande. Um desses aparelhos misteriosos era conservado pendurado atrás da
porta, mais ou menos atabafado entre roupões, e consistia num cilindro de vidro
protegido por uma vistosa casca de metal esmaltada a vermelho e adornada com
arabescos dourados. Da base do cilindro, como uma cauda perversa, pendia um
tubo de borracha flexível com uma torneirinha na ponta e foi por dolorosa
revelação de uma barriga entupida por demasiado algodão-doce que descobri um
dia para que servia aquilo que eles referiam gravemente como o irrigador.
Mas o que eu gostava mesmo de
espreitar, até por perceber que era artefacto de mulheres que não se me
aplicava, eram os ferros de tonalidade calcinada e vago odor infernal a chamuscado,
escondidos num armarinho branco com altura própria para poder ser usado por um
daqueles gnomos que geralmente habitam cogumelos. Mais tarde vim a compreender,
não sem alguma desilusão pela finalidade tão inócua, que não eram aparelhos de
tortura mas sim ferros de frisar cabelo!
Embora, em tempos de inventário, cada
um de nós preferisse o seu particular no recheio do quarto de banho havia algo
para onde fugia toda a nossa predileção colectiva. Sobre o tampo da cómoda
principal uma caixa redonda de prata esperava, paciente, o momento em que os
meus avós decidissem levantar a tampa e retirar um dos rebuçados medicinais,
envolvidos em papel imaculado a que sobravam uma grandes orelhas brancas por
onde se desembrulhavam, drops que
ajudavam a acalmar o catarro matinal de fumador do meu avô. Mas, por vezes,
numa das visitas rituais ao quarto de banho, um de nós era presenteado com um
exemplar da poção. Os meus preferidos eram aqueles em que algum do caramelizado
já repassara o papel, pois que sabia serem os que estavam num estado de madurez
perfeita para escorregarem pela garganta em absoluto deleite. Na sua peganhice
aqueles rebuçados eram tão tentadores que valiam o pecado mortal de serem
surripiados numa surtida clandestina à casa de banho...
Durante estes anos pensei naqueles
rebuçados sem conseguir concretizar o que seriam, de onde viriam; pensei-os até
extintos.No outro dia comprei num supermercado um pacote de rebuçados da Régua, guloseima que costumo adquirir longe a longe. Mas a este pacote específico resolvi despejá-lo todo numa tacinha que estava pousada sem serventia sob os meus olhos. E foi no final desse gesto, cinquenta anos depois, ao olhar os caramelos acondicionados que vim a concluir que rebuçados eram aqueles que crepitavam como uma promessa na caixinha de prata dos meus avós.
© Fotografias de Pedro Serrano, Dezembro 2013.
Dr. Pedro Bom Dia
ResponderEliminarVenho por este meio desejar-lhe um Bom Natal e Feliz Ano Novo na companhia de toda a sua Familia.Tenho lido os seus artigos e gosto muito .Beijinhos Ana
@ Olá, Ana. Obrigado pelos seus Votos de Boas Festas e pelas suas visitas a este blog. Também para si e para os seus Votos de Bom Natal e um Bom 2014.
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