Veio cá parar, como a maior parte
deles, pela mão do Zé João que, regressado da escola, topava num gato
abandonado, pequenino, trémulo e de olhos ramelentos. Depois enfiava-o num
caixote de papelão, cruzava o portão com ele e pronto. Nunca nenhum de nós – eu
ou a mãe – lhe disse que não, que não dava, que a altura não era boa, a adopção
era imediata e sem formalidades.
A Mia veio tapar o buraco da morte da
Tangerina, o que me faz supor que, tendo morrido a outra no Natal de 2001,
possa ter aparecido aqui em casa em 2002, deveria andar agora pelos treze,
catorze anos, uma senhora idade para um gato.
Era uma vadia predominantemente
cinzenta, de olhos verdes, uma mancha branca de uma pureza de glaciar entre as
patas dianteiras, contrastando em combinação perfeita com o cinza-frio do resto
do corpo.
Ontem à noite, perto da uma da manhã,
já estava deitado, ouvi miar, como que um chamamento; discreto, nada de
especialmente insistente ou desesperado. Levantei-me, desci, ela jazia deitada
na pedra do jardim onde na última semana passava os fins de tarde, para depois
desaparecer até à manhã seguinte em sítio incerto. Desde que ficou gravemente
doente (complot de idade e cancros da mama, que iam sendo operados mas voltavam
uns tempos depois na mama seguinte) deixou de querer estar no interior da casa,
nunca percebemos a razão. Andava em torno da casa, ia mudando de local à medida
que o sol rodava no céu, um dos locais preferidos era a terra sob os
marmeleiros, aquecida pelas duas da tarde mas ensombrada pelo túnel do
entrelaçado das plantas. Primeiro deixou de comer, mas bebia; depois deixou
praticamente de beber, nos últimos dois dias não aceitava sequer a água que lhe
estendia numa tijela, para exaspero do dono. Ontem, ao longo do dia, ao vê-la
deitada no chão, a cabeça encostada à pedra quente, já sem reagir muito a
estímulos exteriores não duvidei que iria durar pouco: um dia, dois dias? Era
impossível continuar assim por muito mais, com aquela respiração aflita, aquele
olhar triste ausentando-se...
Diz a Carlota que de manhã, ao fazer-lhe
uma festa, que levantou a cabeça e terá olhado para ela como que a despedir-se,
muito amiga.
Então, ontem à noite, ao ouvir o miado,
desci e encontrei-a deitada na pedra do chão perto da porta da entrada. Quando
me sentiu perto, balbuciou um pouco, acariciei-a e acalmou. “Mia...” Fez-me
impressão vê-la ali, estava a cair aquela bruma nocturna que é tão useira nas
praias, à noite. Fui procurar a manta onde ela se costumava deitar na cadeira
ao lado da lareira e embrulhei-a nela, sentindo-me indignado com o peso-pluma a
que a gata tinha chegado. Embrulhei-a bem, apenas a cabeça de fora, deixou-se
ficar sem protesto naquela figura de criança abandonada numa trouxa. Fiz-lhe
uma festa, entrei, fechei a porta como quem vira as costas a um comboio que sai
da estação.
Hoje, ao amanhecer, estava no mesmo
local de ontem à noite, exactamente, embrulhada na sua manta-xadrez, quase
parecia que nada tinha mudado e que dormia, não fora as patas traseiras
esticadas e a sobrar da manta, o carreiro de formigas que se apressava em
direcção a ela como mulheres para saldos.
Enterrei-a num canteiro, sob roseiras.
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