Estava lá
fora, na rua, a enfiar qualquer coisa na mala do carro, quando senti ladrar nas
minhas costas. Era ele, a uns dois metros de mim, a ladrar na minha direcção,
mas, mais do que em minha intenção, parecia que ladrava ao ar em volta.
“Então!”,
admoestei-o com brandura, batendo com a mão na coxa, nesse gesto ancestral que sossega
os cães e até faz saltaricar alguns de regozijo. Ele acalmou, esboçou um abanar
tristonho do rabo, avançou um passo para mim. Aproximei-me, uma mão estendida, no
aviso de uma carícia, mas ele deu meia volta e entrou pelo portão, contíguo ao
meu, que leva à casa dele.
Coitado do
Imperador Chinês, está de luto mas ninguém lhe disse nada.
O Imperador
Chinês é um dos três cães dos meus veneráveis e estimados vizinhos Luísa e
Fernando Baltasar. Para além dele há um perdigueiro de temperamento folgazão e
uma cadelinha branca e fofa, mas seria pouco delicado da minha parte deixar os
dois gatos da família fora da listagem: o gato preto, que vai envelhecendo e
tem brancas no negrume perfeito da pelagem; e a gata branca de olhos claros, com
uma expressão de perpétuo espanto, e que me assombra o peitoril das janelas com
frequência. Mas voltando ao Imperador Chinês...
O Imperador
Chinês não se chama mesmo assim, fui eu que lhe atribui o cognome por causa do
aspecto geral, da pose. É um bicho já entrado nos anos, com a rolicez do corpo
que perdeu formas, de pêlo amarelado e olhar semicerrado, distante, nos
olhos algo em bico. Às vezes, quando se senta, imóvel, a tomar sol no jardim da
frente da casa ao lado parece mesmo um imperador chinês a contemplar o seu
império através da fenda dos olhos.
O Imperador
Chinês era a sombra do Sr. Fernando Baltasar, que nos morreu na passada quinta-feira.
Eram um par clássico aqui na Praia e podíamos cruzar-nos com eles todos os
dias, partindo ou regressando do seu passeio pelas cercanias, ou encontrá-los sentados
num murete à beira-mar vendo rolar as ondas ou passar os automóveis. Já não me
lembro de ver o Sr. Fernando sem ele ou ele sem o Sr. Fernando, a não ser na
situação em que, em separado, podiam estar a tomar sol sentados no patamar da
entrada da casa ao lado da minha. Mas, até nessa atitude solitária, penso que
esperavam um pelo outro.
Pois agora
o Sr. Baltasar foi-se e ninguém deve ter explicado convenientemente ao
Imperador Chinês o que se passou. Não o vi na sala dos velórios da igreja do Seixal, nem
sequer, no Sábado, no funeral que levou uma procissão de carros e mais de uma
centena de pessoas ao cemitério da Lourinhã. Estava um dia azul, de sol, e não
foi dada ao Imperador Chinês a oportunidade de olhar uma última vez para o seu
dono, como fez a D. Luísa, nem pôde despedir-se da sua companhia mais certa lançando
um punhado de terra surda sobre o envernizado do caixão.
E agora,
que são quase quatro da manhã e não há uma lua no céu, ouço lá fora o latido solitário, rouco e esparso, do Imperador Chinês lamentando o desaparecimento do seu amigo.
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Junho 2012.
Gostei...
ResponderEliminar@ Anónimo, obrigado.
ResponderEliminarPois é... o pobre "Imperador Chinês" perdeu o seu amigo inseparável. Mas este blog torna-os imortais. Pobre "Imperador" já pouco vê e ouve ainda menos, padece de todos os "males" que o dono tinha, e até no comportamento tinham muito em comum. :-) Lá pelo meio do velório comentei com a duas ou três pessoas que gostaria de trazer os bichos, para que eles entendessem, lá no seu entendimento animal, o motivo pelo qual o dono não voltará a casa (pelo menos não fisicamente). Uma prima lá mais para o conservador ladrou-me de lá um "é doida a miúda", e as coisas ficaram por aí para evitar polémicas desnecessárias. Eu acho que eles sentem... mas ainda o procuram, tal como nós. Fica um gosto amargo depois de tantos anos de luta vê-lo partir deste modo. Até sempre Querido Pai... e obrigada pela homenagem Pedro.
ResponderEliminar@ Patrícia, Obrigado pelo teu belo comentário. Sim, sempre os achei parecidos e inseparáveis, por isso me fez tanta impressão vê-lo por ali à toa, às voltas pelo quintal, na parte da frente, no passeio em frente ao portão. E continua, todos os dias pelo fim da tarde.
ResponderEliminarFica bem por essas lonjuras que nós por cá estaremos à tua espera na rua dos Pioneiros onde, desejo que por muito tempo, possa continuar a ouvir o riso e o tom de voz inconfundíveis da tua mãe a entrar pelas janelas da minha casa.