18 abril 2011

VOU-TE CONTAR: 34. Entrar pelo cano

Na cidade do Porto parece ser um pré-requisito à felicidade as pessoas morarem perto umas das outras ou, até, em cima umas das outras.
As minhas duas irmãs moram no mesmo prédio, uma no quarto-direito e a outra, para não imitar demasiado a mais velha, no terceiro-esquerdo. As minhas amigas, e irmãs, Pais que, por acaso, casaram com dois irmãos, moram no mesmo prédio onde, também por acaso, foi morar um amigo do grupo de quando todos tínhamos vinte anos e o tempo não existia. A minha prima Gabi, por acaso prima direita das referidas Pais e enviada pela vida para o degredo de Braga (uns longínquos 45 km do Porto), suspira ao dizer que o que gostava mesmo era de habitar uma grande casa onde residisse toda a gente de que gosta: as irmãs, os maridos e os filhos respectivos, os amigos, etc. Mas, o que é mais grave, é que esta loucura colectiva parece vir de trás...
No dealbar dos anos 50 do século XX, o meu avô Heitor mandou construir duas moradias geminadas em frente ao palacete que construiu para si próprio numa pacata zona residencial. O casal Zaida e Heitor tinham três filhos, mas só foi necessário construir duas casas, pois a minha tia Teresa, apesar de casada e com filhos, já morava em casa dos pais por onde, aliás, ficou provisoriamente até tudo se transformar em poeira cerca de 50 anos depois. Para uma dessas novas casas geminadas foram morar os meus tios e os meus primos e, para a outra, nós, isto é os meus pais, as minhas duas irmãs e eu. Resumindo: toda a família nuclear morava num raio de atravessar a rua, o que tornava o Natal muito prático e corresponde, mais coisa menos coisa, ao sonho da Gabi.
A minha casa mais antiga era cópia exacta da casa mais antiga dos meus primos: disposição dos quartos, salas, lançar das escadas, da claraboia; cozinha, quintal... Minto!, no terreiro para onde dava a porta da cozinha da nossa casa havia uma olaia, onde construímos uma casa, e no da casa dos meus tios havia um chorão de ramos pingões e que não servia para nada. Tirando isso, eram completamente iguais, construídas tão ao mesmo tempo, com o mesmo plano e com os mesmos materiais que até havia uma funcionalidade siamesa que devia ser partilhada por ambas as casas sob risco de morte por seca ou, pelo menos, de abjeção por sujidade. Refiro-me ao cano.
Clarinha e eu (enquadrado na porta da 1.ª caseta).
Neste cano corria a água que ia abastecer os tanques de lavar roupa de ambas as casas e que se situavam, em espelho e apenas separados por meio-muro, a uns vinte metros da porta das cozinhas. Bebendo directamente do abastecimento camarário, o cano iniciava o trajecto atravessando os alicerces e depois, já mais próximo da luz do sol, entranhado no muro que separava as duas casas, indo terminar-se, como uma serpente de chumbo com duas bocas, numa torneira sobre cada um dos tanques. Mas como gerir em harmonia um cano que serve duas famílias e a hipótese de se querer lavar roupa a horas desencontradas?
Felizmente alguém tinha pensado nisso e, na primeira caseta, os operários que construíram as casas deixaram um tijolo por colocar na parede que separava a nossa primeira caseta da primeira caseta da casa dos meus tios. Nesse buraco, somente do comprimento e da altura de um tijolo, o cano estava à mostra e sobre ele havia um manípulo que, rodado para um lado, dava água ao nosso tanque e, rodado para o outro, vertia água no tanque dos meus primos.
Quis o destino que esse buraco e esse manípulo de metal viessem a ter uma outra funcionalidade, esta para além do sonho mais louco do construtor das moradias geminadas. Esse buraco tornou-se o principal ponto de comunicação entre as duas casas e a expressão “vai chamar a tua tia ao cano” era tão natural nas nossas vidas como o ir para a mesa ou o ir à porta atender o toque do carteiro.
“Tomásia, por favor vá ao cano e diga à D. Olinda que preciso falar com ela...”,
dizia a minha mãe à criada, como se não houvesse telefone ou não fosse possível conversar frente a frente no sítio em que o muro que separava os quintais dava aos adultos pela cintura. Mas não, ninguém usava os telefones ou se lembrava, sequer, de falar de janela para janela. Ia-se à caseta, uma arrecadação anexa à porta da cozinha onde se guardavam vassouras, baldes e outros utensílios com cabo como ancinhos e enxadas, ou produtos relacionados com a limpeza e a fertilização como a água-rás, a creolina e o Foskamónio, soltava-se o manípulo da rosca onde estava encaixado o manípulo e batia-se com este no cano até que alguém ouvisse as vibrações do lado de lá. 
Estabelecido o contacto, a minha mãe e a minha tia Olinda, cunhadas amigas muito conversantes, dialogavam horas em pé, dobradas, de modo a conseguirem ver uma nesga da cara uma da outra através do buraco no cano, e parecendo-se, na pose, com as figuras de pescoços distorcidos das pinturas modernistas.
Não recordo, para além da incumbência de ir chamar alguém ao cano para proveito de um adulto, o ter usado o cano em proveito próprio. Acho que éramos considerados demasiado pequenos e irresponsáveis para termos acesso a tal tecnologia.


Imagens, de cima para baixo: (1) © fotógrafo desconhecido, anos 60; (2) Pablo Picasso.

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