10 abril 2011

ALL INCLUSIVE

Quando pediu a terceira caneca de cerveja, a empregada, uma mulata de olhos castanho-claro, perguntou:
“É all inclusive?”
Carlos levantou o braço, exibiu a pulseira de plástico vermelho:
“Podes falar-me em português! É, é tudo all inclusive, não vês a anilha?"
Ao ritmo de uma coladeira, Ângela dançava sozinha na pista de dança, na órbita do Luís e da Leonor que rodopiavam felizes como piões. Dava inveja, o modo como a cunhada e o marido, casados há mais de sete anos, se davam bem, como pareciam preferir a companhia um do outro a outra companhia qualquer.
Ele e Ângela, pelo contrário... Carlos tinha os nervos à flor da pele, fora uma coisa que herdara do pai, e Ângela uma mania de ver tudo cor-de-rosa num mundo que era mais cinzento do que outra cor. E aquela pachorra dela... irritava-o. Ainda há bocado... Tinham combinado com os cunhados encontrar-se às oito no Salinas, o restaurante  mais categorizado do resort; era a Noite Tropical, jantar ao som de música ao vivo, seguido de baile.
“Oito em ponto, lá”, assinara o pacto à porta do quarto, depois de chegarem da piscina, “se não arriscamo-nos a apanhar uma mesa de merda...”
Pois, Senhor, apesar disto, apesar de ter ouvido perfeitamente a combinação, Ângela demorara-se ainda a telefonar ao pai e à mãe, a descrever tudo quanto tinham feito durante o dia, o que tinham comido, a T-shirt rosa com I Love Cabo-Verde que tinha comprado para a Bebiana, a sobrinhita que ficara em Rio Tinto com os avós; o carago a quatro! Depois, enquanto ele tomara um duche e se vestira em dez minutos, ela fechara-se no quarto de banho durante mais de meia-hora donde saiu toda nua, a cara besuntada de creme, o cabelo enrolado dentro de uma toalha de banho! E ele, estirado na cama, já a começar a ferver, folheando o prospecto das excursões à ilha sem conseguir fixar uma palavra...
“Ângela, não sei se já reparaste: são oito menos quatro...”
E ela a tirar cruzetas do armário, a perguntar:
“Achas que leve o azul ou o preto?”
E ele:
“Leva o que quiseres, mas vê se te despachas..., o Luís e a tua irmã já devem estar à nossa espera lá em baixo...”
E ela, encostando os vestidos ao corpo em frente ao espelho, com cabide e tudo:
“Oh, isso é o que tu pensas – a Leonor ainda é pior do que eu a arranjar-se...”
E ele:
“Está certo, pode ser que sim, até podia ser paralítica, problema deles; mas nós combinámos às oito. Enquanto esperamos podemos ir tratando da mesa..."
(a espumar por dentro).
Quando saíram do quarto eram oito e trinta e dois e Carlos tinha dado a noite como estragada; empurrou com ódio a tentativa de abraço de Ângela, ignorou o sorriso contente dela, a pergunta:
“Estou bonita...?”
Quem, sem pergunta nenhuma, acabara por responder à pergunta fora o Luís que, ao entrarem na recepção, a brindou com um:
“Mas olha só que princesa! Já viste a tua irmã, Leonor?”
Apesar do restaurante estar bastante cheio, tiveram a sorte de arranjar mesa para quatro perto da pista de dança, pois o cunhado, que metia conversa com toda a gente por onde passava, fizera amizade com uma empregada que ás vezes também estava nos pequenos-almoços, uma mulata gordinha e de imponente cagueiro, dona de uns belos olhos castanho-claro.
E agora estava para ali, a olhar o palco, infeliz por não fazer parte do que nele se passava, mas honrando a zanga que começara no quarto. Carlos deu um gole na caneca, a cerveja soube-lhe a azedo, perdera o gás e a graça. Dali a três dias estariam outra vez lá, na bicha de trânsito para a Circunvalação, ele a atender telefonemas impantes de assinantes estúpidos que não sabiam sequer usar o telemóvel topo de gama que tinham comprado; ela a impingir vestidos na Lanidor a gajas que mal cabiam dentro deles.
Olhou a pista. A música tinha acabado, começara uma de ritmo lento e Ângela fizera menção de regressar à mesa, deixando a irmã e o cunhado a dançar agarradinhos. Mas eles não deixaram, a irmã passou-lhe o braço pelo ombro, o cunhado fechara o anel e faziam agora um trio dançante.
Carlos emborcou o resto da caneca. Logo a seguir sentiu qualquer coisa estalar e ceder dentro dele, aquelas putas daquelas mornas tinham um efeito estranho, mesmo sem perceber as palavras a música acendia nele uma nostalgia por algo de bom que, embora passado para sempre, sem remédio, se deseja de volta. Levantou-se, atravessou o espaço até ao palco em passo inseguro, tocou no ombro de Ângela, perguntou em voz pastosa:
“Dá-me a honra desta dança...?”
Ela acenou um sim húmido, abriu-lhe os braços e incluiu no pacote o mesmo sorriso que lhe arreganhara quatro anos atrás quando, pela primeira vez, a convidara para dançar no salão dos Bombeiros de Rio Tinto.

© Fotografia de Pedro Serrano, Mumbai (Índia), 2011.



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