Recorrentemente, tal como em outras ocasiões
em que se previa um ataque maléfico iminente, iniciámos o acautelar da situação
pelo controlo de janelas e portas.
Comecei pelo rés-do-chão e, apesar de ninguém desconhecer o que se ia passar a qualquer
momento, era incrível como, praticamente, nada fora feito: por trás de cortinas
corridas encontrei estores subidos, venezianas ilusoriamente encostadas, portadas
que puxei para mim e tranquei com o alívio dos gestos definitivos. O mesmo
desleixo contaminava a porta das traseiras, a quem corri ferrolhos; a de
serviço, que ligava a casa à garagem, e a da própria garagem – esta última, uma
enorme porta de correr, a meia-haste.
Nos andares de cima, as janelas
pareciam ter-se multiplicado, a casa ia-se desdobrando em alas e quase a não reconhecia
de tão grande, encontrei até divisões que desconhecia. Mas nada que se
comparasse com a surpresa que me aguardava ao subir ao último andar.
Chegara a meio dos degraus, o amplo
patamar, soalho de tábuas corridas, estendia-se ao nível dos meus olhos, quando
vi surgir das portas em volta um bando de indivíduos esfarrapados, brandindo na
minha direcção lanças que se assemelhavam a setas de espingarda de
caça-submarina, a haste metalizada, as pontas trifurcadas.
“Ei, que fazem vocês nesta casa? Vocês
não moram aqui!”, exclamei, indignado, conseguindo interceptar uma das lanças e
passando a usá-la a meu favor, como devolução da intimidação. Depois virei-me
para o meu pai, que emergira a meu lado nas escadas, disse:
“Já viu, pai, parece que temos vagabundos
a viverem nesta casa... Tem vindo cá cima, sabia disto?”
“Agora isso pouco importa”, respondeu
ele, pragmático, “vais ver que até nos vão, por uma questão de sobrevivência,
ajudar a defender este andar contra o mal; é menos um flanco com que teremos de
nos preocupar”.
“Fechem bem as janelas...”, recomendei
ao tipo de tronco nu e cabelo desgrenhado que me pareceu ser o cabecilha dos ocupantes.
De novo cá em baixo, encontrei as salas
cheias de gente da nossa, correspondendo a uma concentração equivalente à dos
natais ou festas semelhantes, mas nenhuma daquelas almas, apesar de não ignorar
o ataque que se esperava, parecia apreensiva ou, estando-o, se mexia para tomar
medidas que pudessem amortecer a intrusão.
“Vamos dar uma olhadela lá fora...”, segredei
a um dos meus primos, pois queria examinar o aspecto exterior da casa,
experimentar o estado geral das janelas.
Cá fora, a noite estava escura e
abafada e a lua rolava entre nuvens manchadas por um azul quase negro, tal se
tivessem sido atingidas por tinta de polvo. Encontrámos duas janelas de
portadas abertas ao nível do rés-do-chão, enrolei um pedaço de arame em torno
do fecho partido de uma delas. Depois apercebi-me que, por cima das nossas
cabeças, havia uma tabuleta pendurada, como se fosse o anúncio de uma estalagem,
mas sem letras ou outros enfeites.
“Sabes para que serve isto?”,
perguntei. Ele encolheu os ombros. Mal acabara de fazer a pergunta quando, do
corpo da tabuleta, se desprendeu um fio até ao chão, uma espécie de cabo
eléctrico, revestido por plástico branco. Uma vez em contacto com o solo, o fio
começou bruscamente a ser esticado, como se passasse a estar incrustado no
asfalto, para logo daí ser arrancado, a parte solta chicoteando o ar,
enrolando-se, mais e mais metros continuando a ser arrancados com violência,
fazendo rodopiar a tabuleta, esventrando o asfalto do chão. Era o mal que
chegava, mas não havia presença visível, quer dizer: não se viam os seres que
lhe estavam na origem, ou os executores.
“Chegou, e nós cá fora, de porta
aberta...”, ouvi-me dizer.
Agora que estávamos outra vez dentro
de casa dei-me conta do modo devastador como o fenómeno se materializara: eu,
eu próprio, o meu primo, éramos esse mal encorpado – a minha percepção da casa
e dos seus incautos habitantes, volvera-se a de um predador. Uma rapariguinha
da família, criança tímida e calada, aproximou-se pelo corredor e vi, no seu
olhar intenso, que também ela fora possuída, procurava a proximidade da
alcateia. Mas os portadores do mal não se resumiam a alguns de nós, habitantes da
casa, aos que já lá estavam antes da tabuleta começar a girar nos gonzos; havia
mais dois ou três seres que comandavam, perante os quais sentia que teria de
prestar contas caso o meu comportamento não fosse o esperado. Eram seres soturnos,
de contorno humano, mas dotados de fendas, mais do que olhos ou bocas, expressando-se
mais pelo silêncio e pela aura de ameaça do que por fala ou olhares.
“Não os olhes directamente”, aconselhei-me,
dividido entre o facto de agora pertencer ao mal e a hesitação em o infligir (como
estava programado) aos habitantes da casa.
“Será que se dão conta dessa dualidade?”,
perguntava-me, tentando esborratar o pensamento ao ponto de não ser o
suficiente nítido para poder ser detectado pelos espectros que me rondavam.
Como se deslizasse sobre rodas, ou se
movesse sem ter de usar passos, a rapariguita apareceu, os olhos, como carvões
acesos, brilhando de iniciativa a dois palmos dos meus. Não falou, olhou-me
como se aguardasse instruções de por onde esbanjar as novas capacidades.
“Tem calma”, respondi com o silêncio,
“deixa que sejam eles a começar...”
Acordei, com o coração a bater rápido. Aguentei-me, de
olhos abertos no escuro, uns minutos, a forçar a passagem do tempo e a tentar
garantir que quando voltasse ao sono não correria o risco de ir parar ao mesmo horror de onde tinha emergido.
© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1), (3) e (4), Índia, 2012; (2) Oliveira do Bairro, 2012.
Eu e o Gilinho temos frequentemente o sonho da casa do pai a ser atacada. É curioso teres tido um sonho semelhante embora no nosso caso o mal está lá fora
ResponderEliminarSusana
@ Susana, Pois este é mais sinistro, muito sinistro! E não sei bem se é a casa do pai, é uma mistura com Queirã, mas muito maior.
ResponderEliminarO Gilinho tem uma teoria. Diz que a casa é para nós como uma fortaleza, o castelo e que quando estamos inseguros com alguma coisa sonhamos isto.
ResponderEliminarEu odeio.
@ Susana, O Gilinho tem toda a razão. Eu não odeio nada, só tenho pena de tudo ter acabado.
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