Bô dixam bai salvá nha Mãe...
Francisco Xavier da Cruz, "Mar Azul".
Francisco Xavier da Cruz, "Mar Azul".
Vamos quase em novembro e, por todo este
ano, ainda não caiu uma pinga de água no Maio. Enquanto sonha o verde tenro, o
solo mantém-se seco, árido, malgrado a vegetação plantada para fixar terras e
contrariar a erosão. A poeira é omnipresente.
O Maio é uma das nove ilhas habitadas
do arquipélago de Cabo Verde e uma das mais periféricas na lembrança, pois não
é capital, como Santiago, não possui o carisma de S. Vicente, os estonteantes
contrastes de Santo Antão ou os resorts
all inclusive da Boavista e do Sal.
No Maio, o mais notório é a plana monotonia
da paisagem que restou de um vulcão depois de extinto e aplanado por duzentos
milhões de anos de ventos soprados até ali desde o norte desértico de África.
Nessa
manhã de Domingo, pelas dez horas, uma das duas carrinhas Toyota passou pela
casa Amarela para nos buscar. A outra, tal como a nossa, andava a levantar pó
pela vila de Porto Inglês e a pegar os restantes, pois, ao todo, seríamos uns
vinte e cinco viajantes, os mesmos, em versão folgada, dos que tomavam parte no
encontro médico que o liceu Horace Silver albergava durante uns dias. O
programa desse dia consistia numa excursão à ilha, a qual incluiria uma visita
ao centro de saúde e se concluiria com um almoço num alpendre com vista para o
mar na residência onde estava hospedada a Maria da Luz, nossa anfitriã e de
quem partira a ideia de reunir todos os delegados de saúde de Cabo Verde. Três
horas bastariam para percorrer tudo quanto merecia ser visitado, ao que parecia,
pois a ilha é pequena: 25 km de comprimento por 15 de largura.
Catados um a um, entre risos e
conversas, arrancámos sob um sol abrasador, o astro esquecido de que despontara
há apenas quatro horas.
Barreiro, Figueira Seca, Pilão Cão, eu
ia reparando no nome de localidades que atravessávamos sem parar e de que a
memória apenas retinha uma rua paralisada pelo calor. Entre duas localidades,
nenhuma gente, somente aridez e pó e, aqui e ali, uns pés de milho desanimados,
que mal ousavam a espiga; algumas verduras domésticas envergonhadas e os perfis
magros de vacas e cabras que vagueavam na aspereza de encontrar sustento. Longe
a longe, sem aviso, a explosão verde de um arbusto, numa cor excessiva para o
leito arenoso e ocre de onde se erguia, fazia insuflar-me o peito com uma
inspiração esperançada, como se tivesse acabado de engolir um gole de água
fresca.
Há demorados minutos que deixáramos de
ver o mar, e até as conversas tinham fenecido sob o calor, quando os meus olhos
repararam numa tabuleta anunciando CASCABULHO e logo senti as carrinhas a travar
num lugarejo que parecia ser constituído por uma única rua, em cujos becos
espreitava a aridez do campo ou o verde empoeirado de uma acácia. “É para sair?”
perguntámo-nos. Parecia que sim, e enquanto aguardava a vez de chegar à porta
do veículo, chamou-me a atenção uma imensa panela que, no meio da rua, fumegava
sobre brasas. Que seria aquilo?
A aldeia consistia numa rua de chão
calcetado à mão-cheia, ladeada por casas de piso térreo, sem intervalo entre
elas, e a casa em frente à qual, sob um loureiro-rosa em flor, fervia o
panelão, pintava-se de azul intenso, amenizado por frontões brancos sobre as
janelas. Dei por mim atraído pelo movimento que se encaminhava para a porta da
pequena moradia, a ser saudado por um “seja muito bem-vindo” e um convite para
entrar. Entrei, os meus olhos notaram a luz violenta que se infiltrava pela
telha vã dos compartimentos; fui acenando em volta enquanto progredia pelas divisões
apertadas, sentindo que atrapalhava as mulheres e raparigas que se afadigavam
com travessas, pratos, talheres e esticavam entre as mãos oleados para cobrir
as mesas postas no exterior, sob a sombra, curta mas generosa, do loureiro-rosa.
Do interior de uma das janelas da casa um rapazito dispunha sobre o peitoril
duas pequenas colunas de som, ligadas a um smartphone
cuja música, em volume máximo, contaminava o ambiente e acenava à gente das
redondezas. Que seria aquilo, quem seria o insensato que se dispusera a
receber, para uma paragem apressada em nenhures, aquela quantidade de gente?!
Ia perguntá-lo a um colega que, como
eu, se abrigava do calor sob o beiral estreito da casa quando uma brigada de
rapazes nos empurrou para dispor nessa sombra dois ou três bancos corridos que
tinham tomado, em empréstimo urgente, à capela local. E estava a festa pronta e
a decorrer, e ainda as toalhas de oleado com frutas alegres estampadas ondeavam
sobre as mesas, e já uma alma atenta me enfiava nas mãos um caldo fumegante,
retirado à panela que rescendia no meio da rua. Era uma canja, amarela como as
canjas, saborosa como as do Eça de Queiroz, mas de cabrito e não de galinha,
que as cabras safam-se melhor nos terrenos onde parece nada restar para
alimentar os seres. Mas ainda eu sorvia a sopa e chupava os meus pedacinhos de
carne e já grossas fatias de bolo de aspecto fofo iam sendo trocadas pelos
pratos de sopa recolhidos e alguém desarrolhava uma garrafa nova de whisky.
E como tudo se desenrolava e explicava
harmoniosamente por si só, bastou-me ver no mesmo enquadramento a dona da casa
e a minha colega Hermita para perceber, na similitude dos traços físicos, que
assistia ao regresso de uma filha a casa dos seus pais, um regresso partilhado
e testemunhado por colegas de todas as ilhas de Cabo Verde, onde ainda sobrara convite para dois portugueses
e um representante da Organização Mundial de Saúde.
Hermita, que conhecera dois dias antes
e estava alojada com alguns de nós na casa Amarela, deixara a sua aldeia de sol
eterno ainda muito nova para estudar fora. O curso de Medicina fê-lo lá longe,
na Rússia, seis anos a milhares de léguas de tudo, de casa, de Cabo Verde; forçada
a trocar o clima macio e a morabeza natal pelo frios perenes do leste europeu,
pela estranheza da língua e do modo de ser dos eslavos. De temperamento
contido, a tudo resistiu sem queixa e voltava agora a casa, a mostrar, sem o declarar,
aos seus que triunfara na demanda e honrara os seus. Isso tudo se compreendia,
sem necessidade de palavras, no olhar, simultaneamente orgulhoso e feliz, com
que a mãe mirava a filha naquele Domingo em que a festa se mudara, levando
consigo os bancos, da igreja para a pequena casa azul de Cascabulho.
Nem uma meia-hora teria passado sobre
a nossa chegada quando começaram a chamar para as carrinhas, apontando os
relógios, anunciando que se fazia tarde. Antes de regressar ao meu assento, contagiado
pela correnteza humana, atravessei ainda a rua para ir espreitar, na casa em
frente, a avó de Hermita, que tinha feito cem anos por esses dias. “Acha boa
ideia?”, perguntava-me o Paulo, hesitante, “não acha que toda esta gente pode significar
uma invasão da privacidade da senhora?” Encolhi os ombros, não sabia o que
pensar ou o que dizer. Éramos conduzidos por alguém da família e na sala que
antecedia o quarto, parentes e vizinhos sentavam-se ao longo das paredes e, não
fosse os semblantes sorridentes, poder-se-ia pensar que velavam um ente querido
recentemente partido. Quanto ao visitante, este penetrava no pequeno quarto
durante uns instantes para cumprimentar a senhora acamada e logo se retirar e,
ao apertar a mão seca dela na minha, ao encarar os seus olhos vagos e atentos, riscados
por cataratas, achei que visitar a velha senhora encerrava algo do propósito da
visita a uma pessoa santificada, abençoada pelos anos e pelo rasto de gente com
que presenteara o mundo na parcela de eternidade que lhe fora concedida.
© Fotografias de pedro serrano, Cascabulho, ilha do Maio, Cabo Verde, Outubro 2017.
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