29 março 2022

O PODER DO CANICHE

Jane Campion não é, para mim, alguém que se recomende. Fiquei vacinado contra a senhora há muito anos, através de dois filmes que sofri torcendo-me na cadeira para que chegassem ao fim. Para além de medíocre a contar histórias, Campion é dotada da habilidade de, sistematicamente, dar cabo do desempenho do melhor actor! Aconteceu em O Piano (1993), uma pepineira gótico-sentimental na qual Harvey Keitel (actor excelso) e Holly Hunter arrancam cabelos e torcem as mãos, e repetiu-se em Retrato de Uma Senhora (1996), filme onde Jane Campion, em duas tesouradas, arruína as intenções da obra-prima de Henry James e força John Malkovich e Nicole Kidman (particularmente esta última) a contorções delicodoces que nada tem a ver com a tonalidade da história. Aliás, Nicole (excelente atriz) tem um certo pendor para ter azar com realizadores: além de Campion, é inenarrável o modo como foi gratuitamente explorada por Lars Von Triar em Dogville (2003) e, até, por Stanley Kubrick em Eyes Wide Shut (1999). Adiante.

Pois acontece que reincidi na esparrela de perder tempo a ver um filme de Jane Campion. Mas toda a gente, até os periódicos mais confiáveis, falava na maravilha que aquilo era, candidato a uma meia-dúzia de Óscares; ao referi-lo, as pessoas reviravam as pestanas em direcção ao céu, etc. Ainda por cima, era acessível através de um simples clic na Netflix. 

Ao fim de cinco minutos de visionamento, o alarme do costume começou a zunir ao fundo de mim, mas, que diabo, talvez que a história se fosse desenvolver, revelar, e o filme desabrochar: o melhor seria continuar a tentar... E continuei, forcei-me a ver até ao fim e com isso ganhei o Óscar do patego a quem venderam caniche por cão!

No filme há uma senhora (Kirsten Dunst, óptima actriz, como a série Fargo - HBO, recentemente demonstrou) que, nos anos vinte do século passado, tem um restaurante e um filho maricas, coisa que Campion nos dá primeiramente a perceber por o rapaz fabricar flores de papel para as mesas do estabelecimento. Ora esse rapaz maricas passeia-se pelo filme como uma versão algo mais tisnada de Tadzio, a beldade de Morte em Veneza (Luchino Visconti, 1971), só que este tem o azar de o andar a fazer pelo velho far-west americano, um terreno saturado de cowboys e fazendeiros viris que se fartam de exercer bullying e discriminação sobre o sensível moço.

Ainda por cima, a mãe casou com o rico fazendeiro Burbank (Jesse Piemons, parceiro de Kirsten Dunst em Fargo e na vida real, igualmente bom actor e na moda, a quem Campion faz flutuar pelo cenário como uma alma penada que desconhece onde há-de aterrar). Esse rico fazendeiro, vá-se lá saber porquê, possui uma rica mansão no meio do nada, mansão onde mora com um irmão (Benedict Cumberbatch, igualmente muito requisitado actualmente como actor, mas de desempenho bastante histérico e medíocre sob a batuta da realizadora), parente que é um autêntico poço de maldade: agressivo, intolerante, não se lava, e tem uma especial predilecção por perseguir e achincalhar os tiques do novo sobrinho, circunstância que acaba por levar a mãe, sob o desgosto e a impotência, a abusar da pinga às escondidas.


Ora o que o incauto espectador ainda não sabe é que este ambiente másculo de vaqueiros de barba-rija tem o seu reverso. Nas horas vagas, os ditos vaqueiros reúnem-se à beira-rio onde, sob um tremeluzir de ramagens e reflexos dourados da água, se espojam, nus, numa tranquilidade doce onde abundam as nádegas. Também de folga, mas isolado deles, em local secreto que, para ser atingido, obriga a rastejar por sob sarças e outros arbustos, o tio-vilão tem um esconderijo secreto, um barracão onde esconde revistas masculinas de ginastas e halterofilistas (um proto-equivalente do GQ), onde rapaziada de suíças potentes e bigodaças de longas guias faz exercício em ceroulas! Não querem ver que... Sim, é isso mesmo que o rapaz lânguido rapidamente compreende, sobretudo ao dar com o tio-adoptivo estirado na margem do rio, a esgalhar uma com o nariz nostalgicamente envolvido num trapo amarelecido, despojo que pertenceu a um misterioso Bronco Henry, personagem já falecido mas abundantemente citado no filme, e, adivinha-se, grande influência na vida dos irmãos. Não só os terá ensinado a usar uma arma como, percebemo-lo com um frêmito, teria sido o grande amor do tio mauzão, o qual, talvez por isso, seja tão mauzão e dentro do armário. No melhor pano cai a nódoa, já dizia a reacionária sabedoria popular.

E a partir deste momento seminal tudo muda! De uma hora para a outra, uma criadita que nunca saía dos fundos da cozinha passa a jogar ténis com os patrões; tio e sobrinho tornam-se inseparáveis e fazem longas viagens a cavalo para uma montanha próxima envolvida em mistério, mistérios que nunca se virão a compreender com total clareza. Mas sucede que o rapaz, apesar do grande ascendente amoroso que ganhou sobre o tio, é vingativo e não lhe perdoa as provações anteriores, o modo como tratou a mãe que, nas lonas, continua a beber à sorrelfa. Após uma viagem solitária à tal montanha, o rapaz vem de lá com um pedaço de pele de vaca contaminado por carbúnculo, courato com o qual mata o tio, que estrebucha em convulsões horrendas antes de nos deixar. 

No meio de toda esta confusão (por onde paira, entretanto, o marido de Dunst?), Jane Campion ainda arranja espaço para importar para o ecrã, numa participação a que mal se alcança a razão, mais um monstro da representação: a maravilhosa Frances Conroy, a mãe na série Sete Palmos de Terra. A pobre senhora aparece por poucos segundos e mal a conseguimos reconhecer, pois a cenas desenrola-se, numa escuridão artística, no interior da mansão no meio do nada onde mora toda esta gentinha.   

Tudo é mau e gratuito neste filme: a consistência e a clareza da narrativa; a direcção dos actores, que vagueiam sem saber o que fazer; a banda sonora; os enquadramentos gratuitos; o simbolismo de pacotilha; a beleza de bilhete-postal. 

Mas, ficou-se ontem a saber, ganhou o Óscar de melhor realização! Valha-nos que não conquistou os outros óscares todos que ameaçava ganhar, mas mesmo assim... Qual será o mistério do prémio? É claro que o filme inclui os ingredientes com que se vendem os chocolates hoje em dia, não propriamente os dizeres garantindo que foi manufacturado com ingredientes sustentáveis, mas antes a etiqueta de que vai haver por ali oprimidos, discriminados, e as opções de género sem as quais hoje em dia nada é comerciável.

Tirando isso, e tentando cingir-nos à Sétima Arte, pela amostra parece que o cinema americano deu o que tinha a dar; é uma dor de alma constatá-lo. Se não fossem as cinematografias exóticas (chinesa, iraniana, sul-coreana) não haveria esperança e poderíamos mesmo considerar a sétima arte como bizarria extinta. 

Pobre Hollywood: atingiu o seu esplendor máximo com o murro com que Will Smith (Óscar para melhor actor) presenteou o apresentador do certame, por este ousado fazer uma piada inocente em torno do penteado (ou a falta dele) da mulher de Smith. Muito cinematograficamente, até o murro pareceu encenado e daqueles a rasar a face, Smith aproveitou para, no discurso de vitória, chorar e pedir desculpa à assistência. Justificou-se com o amor (à mulher), que o terá levado a ser violento. Pois, Putin diz a mesma coisa: é o amor à mãe Rússia que o leva a fazer o que tem feito à Ucrânia.

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