Sobre o nevoeiro espesso da manhã caía
uma chuva miúda, a sensação, um tanto leitosa, era a de estar a guiar dentro de
um copo onde se dissolvia um comprimido efervescente de paracetamol.
A meu lado, a Ana Paula Magalhães, a
quem dava uma boleia à estação de comboio, discorria sobre o encontro que
tivera em Cabo Verde com o rapaz sobre o qual eu escrevera dois apontamentos
por aqui (Natal em pleno Verão e Sem Eira nem Beira) e que ela decidira ir
procurar ao Pão Doce, à porta do qual
costumava estar estacionado o carro abandonado onde ele dormia, pois tem um
amigo em Santiago que dirige uma associação-abrigo para crianças orfãs e
sem-abrigo, que estava disposto a recolhê-lo.
“Claro que ele não quis ir…”
“Não me espanta nada”, respondi, “um
tipo de quinze anos, habituado a uma vida de total liberdade, ser agora
enclausurado com mais uns tantos. Ainda por cima um malandro esperto como ele,
que se vai safando sozinho aqui e ali…”
“Isso é agora, mas aquele miúdo vai
acabar mal”, continuou a Ana Paula, “o meu amigo da associação diz que a zona
por onde ele se move é das mais perigosas da cidade…”
Encolhi os ombros, numa impotência, a
começar, feita dos 4000 km de distância entre a manhã morrinhenta e o
ensolarado que, àquela mesma hora, estaria no Plateau da cidade da Praia.
No banco ao lado a Ana Paula, que
estivera em silêncio nos últimos quarenta e cinco segundos, deu uma
gargalhadinha, contou:
“Quando fui à procura dele e o vi
percebi logo, pela descrição do Pedro, quem era; atirei-lhe: ‘vi uma fotografia
tua...’. Ele arregalou muito aqueles olhos grandes e respondeu:
“Como é que podes ter visto uma
fotografia minha!?”
“Vi, vi. Estavas até vestido com um
casaco vermelho, de Pai Natal...”
“O meu amigo!”, teria ele dito,
“conheces o meu amigo...” E, sem transição, olhara a Ana Paula bem nos olhos e
disparara:
“Dá-me uns sapatos...”
Agarrado ao volante, ri-me:
“Estava a fazer uma associação de
ideias com as havaianas que me cravou e eu lhe dei…”
“Claro!”, respondeu ela, “é
espertíssimo o tipo. Quando lhe disse – não tinha totalmente a certeza, mas
sabia que seria por esses dias – que o Pedro talvez estivesse em Santiago, a
trabalhar, ele exclamou: ‘O meu amigo’, e desatou a correr pela rua fora até a
uma casa onde funciona o Centro de Língua Portuguesa, ou lá o que é…”
“Era onde eu costumava trabalhar
quando estava lá…”
“Pois, ele sabia-o perfeitamente!
Sabia as horas a que o Pedro entrava, as horas a que parava para almoçar...”
Tínhamos chegado a Campanhã. Saí do
carro, tirei a mala dela do porta-bagagens, dei-lhe um beijo rápido:
“Despache-se Ana Paula, que ela
molha.”
© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, 2011.
Kandengues da vida ! Linda historia...
ResponderEliminar@ Nandakimbanda, Obrigado pelo comentário.
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