07 março 2014

SAPATOS MOLHADOS

Sobre o nevoeiro espesso da manhã caía uma chuva miúda, a sensação, um tanto leitosa, era a de estar a guiar dentro de um copo onde se dissolvia um comprimido efervescente de paracetamol.
A meu lado, a Ana Paula Magalhães, a quem dava uma boleia à estação de comboio, discorria sobre o encontro que tivera em Cabo Verde com o rapaz sobre o qual eu escrevera dois apontamentos por aqui (Natal em pleno Verão Sem Eira nem Beira) e que ela decidira ir procurar ao Pão Doce, à porta do qual costumava estar estacionado o carro abandonado onde ele dormia, pois tem um amigo em Santiago que dirige uma associação-abrigo para crianças orfãs e sem-abrigo, que estava disposto a recolhê-lo.
“Claro que ele não quis ir…”
“Não me espanta nada”, respondi, “um tipo de quinze anos, habituado a uma vida de total liberdade, ser agora enclausurado com mais uns tantos. Ainda por cima um malandro esperto como ele, que se vai safando sozinho aqui e ali…”
“Isso é agora, mas aquele miúdo vai acabar mal”, continuou a Ana Paula, “o meu amigo da associação diz que a zona por onde ele se move é das mais perigosas da cidade…”
Encolhi os ombros, numa impotência, a começar, feita dos 4000 km de distância entre a manhã morrinhenta e o ensolarado que, àquela mesma hora, estaria no Plateau da cidade da Praia.
No banco ao lado a Ana Paula, que estivera em silêncio nos últimos quarenta e cinco segundos, deu uma gargalhadinha, contou:
“Quando fui à procura dele e o vi percebi logo, pela descrição do Pedro, quem era; atirei-lhe: ‘vi uma fotografia tua...’. Ele arregalou muito aqueles olhos grandes e respondeu:
“Como é que podes ter visto uma fotografia minha!?”
“Vi, vi. Estavas até vestido com um casaco vermelho, de Pai Natal...”
“O meu amigo!”, teria ele dito, “conheces o meu amigo...” E, sem transição, olhara a Ana Paula bem nos olhos e disparara:
“Dá-me uns sapatos...”
Agarrado ao volante, ri-me:
“Estava a fazer uma associação de ideias com as havaianas que me cravou e eu lhe dei…”
“Claro!”, respondeu ela, “é espertíssimo o tipo. Quando lhe disse – não tinha totalmente a certeza, mas sabia que seria por esses dias – que o Pedro talvez estivesse em Santiago, a trabalhar, ele exclamou: ‘O meu amigo’, e desatou a correr pela rua fora até a uma casa onde funciona o Centro de Língua Portuguesa, ou lá o que é…”
“Era onde eu costumava trabalhar quando estava lá…”
“Pois, ele sabia-o perfeitamente! Sabia as horas a que o Pedro entrava, as horas a que parava para almoçar...”
Tínhamos chegado a Campanhã. Saí do carro, tirei a mala dela do porta-bagagens, dei-lhe um beijo rápido:
“Despache-se Ana Paula, que ela molha.”





© Fotografias de Pedro Serrano, cidade da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, 2011.


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