Tecnicamente falando é um
auto-rikshaw, mas em toda a Índia este meio de transporte sobre três rodas é popularmente conhecido
por tuk-tuk. Basicamente, um tuk-tuk é uma motorizada sobre a qual foi montado
um estrado com um banco corrido e uma cobertura de oleado. Ostentam um dizer
com lotação máxima: 3 passageiros,
mas vi, um fim de manhã à saída de uma escola, seis ou sete chilreantes meninos
em traje de colégio acumularem-se alegremente no interior de um único.
Também os há na versão bicicleta e, desta vez, quem serve de motor não é
um motor de 50 centímetros cúbicos mas as pernas do condutor. A nós, brancos,
faz um pouco de impressão pensar no desgraçado magricela que puxa os dois
alentados e vermelhuscos ocidentais que passam por nós, mas se todos olhássemos
para o assunto desta perspectiva, tolhidos de má consciência, esse tipo de trabalhadores
morreria à fome o que, talvez, seja pior destino. De qualquer modo, e voltando
à vaca fria, os tuk-tuk motorizados são, de longe, bastante mais frequentes na
Índia do que os de tração animal bípede.
Em Jaipur, na primeira manhã que resolvemos sair até ao centro histórico
da cidade, perguntámos à gerente do hotel se dava para ir a pé. Sendo mulher de
tipo assertivo, o “não” dela foi rotundo como se a própria pergunta fosse um
disparate, e informou-nos que por 500 rupias (uns 6,5 euros) poderíamos ser
transportados em quinze minutos até ao centro e dar as voltas que quiséssemos,
mantendo sempre à nossa espera o mesmo tuk-tuk que, estando saciados, nos
devolveria ao hotel. Ainda perguntei quanto custaria uma simples viagem de ida,
pois podia apetecer-nos dispensar o pendura e ficar por nossa conta.
“Só ida?”, confirmou ela, abanando a cabeça numa negativa, “custa-vos
250 rupias... É igual e não vale o trabalho de chamar outro!”
O hotel (de que já falei por aqui) ficava numa rua residencial, de
arredores, tranquila, e três vacas sagradas estavam sempre estacionadas por perto.
À saída topámos com um tuk-tuk e de dentro dele espreitavam os pés do condutor,
o qual jazia reclinado no banco dos passageiros, porventura aguardando clientes
frescos. Isso foi o que supusemos, mas quando o abordei com um “free?” ele
negou e informou que estava tomado, aguardava já o seu passageiro. Foi então
que mister Shyam fez a sua entrada em cena, aparecendo do nada e oferecendo os
seus serviços.
O tuk-tuk de mister Shyam estava adornado com um arranjo daquelas fitas
ornamentais prateadas que parecem um arame-farpado natalício, talvez desenhado em
delírio por algum industrial de echarpes. Pela observação do para-choques
fronteiro, onde, entre autocolantes com rosas, várias etiquetas da marca
estavam coladas, compreendia-se que o condutor desejava as qualidades de um
Ferrari ao seu veículo, apesar de um tuk-tuk,
no seu mais frenético excesso de velocidade, não conseguir ultrapassar os 40
km/hora.
Gostei logo de mister Shyam, foi algo que se me revelou mal nos ofereceu
os seus serviços e reparei no seu olhar transparente e pose serena, intuição
que se foi confirmando pelo raciocínio que se vertia em inglês fluente e de
vocabulário rico; no modo tranquilo e algo indiferente com que atravessava o
trânsito louco de Jaipur (e que diminui o movimento de uma hora de ponta
lisboeta à agitação de um domingo à tarde no Sabugal). Talvez por isso,
contrariando aquilo que sempre se deve praticar na Índia quando se contrata um
meio de transporte, não lhe perguntei no início da viagem quanto nos ia custar
a empreitada.
Conhecemos mister Shyam por volta do meio-dia e já era noite quando nos deixou
no Vimal Heritage Hotel. Pelo meio
tinha-nos conduzido a um restaurante, onde ficou à nossa espera enquanto
comíamos. Depois levou-nos às compras e a seguir, por lhe termos comunicado que
bastava de lojas, levou-nos a um templo hindu todo em mármore, um destino que,
como percebemos pelo tipo de multidão que o visitava, não integrava circuitos
turísticos. No banco de trás do tuk-tuk acumulava-se já um livro, que comprara
à saída do restaurante, um envelope com postais e uma bonita jarra de porcelana
azul. Quando retornámos do templo, os embrulhos estavam cuidadosamente
arrumados na prateleira que existia por trás do nosso assento e mister Shyam
informou que os pusera ali por ser lugar mais seguro. Cansados das visitas
pedimos ao nosso guia que nos levasse a um café, um sítio onde pudéssemos beber
qualquer coisa fresca. Mister Shyam reflectiu um pouco e guiou-nos a um local
onde de um lado da rua esperava o nosso café e do outro um colorido templo
hindu.
“Depois do café, se quiserem, podem também ir visitar o templo. Eu
espero ali por vocês”, informou apontando o local onde ficaria de guarida.
Em Jaipur, por esses dias, acabara de terminar um muito famoso festival
anual de lançamento de papagaios e no céu azul, nos vultos que nos terraços das
casas erguiam os braços no ar, orientando um cordel, restavam ainda indícios:
dezenas de papagaios enchiam o firmamento de sombras coloridas.
Cá fora, no final da visita ao templo, a tarde arrefecera e pedimos ao
nosso chauffeur que nos reconduzisse ao hotel. Tranquilamente, guiou por um dédalo
de ruas e de mercados em fim de jornada e, numa avenida de trânsito excitado, travou
serenamente o tuk-tuk para se inclinar e apanhar um papagaio de papel vermelho
que quedava aprisionado no separador central. Sem se incomodar com os apitos
irados atrás de si, virou-se para trás, oferecendo-nos a ave de papel:
“It’s for you...”
Deixávamos o centro da cidade, vi surgir
um lago à esquerda e apontei à minha companhia a manada de vacas que, em recolhida
tranquilidade, parecia observar o sol poente a pintar um afogueado nas águas. Num
retrovisor atento, mister Shyam percebeu o movimento e estacionou na berma do
caminho:
“You can take picture, I’ll wait...”
Foi por esses instantes que tirei a
fotografia de mister Shyam que abre este texto e que ele tirou uma nossa com o
seu telemóvel, para sua recordação futura. Foi também por aí, quando os três
regressávamos ao tuk-tuk, que perguntámos o significado daquela composição que
tinha pendurada sobre a matrícula na frente do veículo e que consistia num
limão ensanduichado numa entremeada de malaguetas; talismã que se encontra por
todo o lado na Índia, até nos sofisticados hotéis de cinco estrelas.
“Ah, é para trazer sorte ao nosso
negócio...”
Agora estávamos parados à porta do Vimal Heritage Hotel. Perguntei a mister Shyam quanto lhe
devia por aquelas horas todas.
“Quanto é que lhe apetece dar-me?”,
perguntou.
“Não faço ideia, diga o senhor...”
“Na vida nem tudo é dinheiro”,
respondeu. “O que é que o seu Deus lhe aconselha como pagamento?”
Inclinei-me para a frente, pousei a
mão no ombro dele:
“O meu Deus não percebe nada de
rupias, lida com outro tipo de divisas...”
Mister Shyam riu-se, estabeleceu o seu
preço em 500 rupias; quis saber se eu achava justo.
Depois indagou sobre como seria o
nosso dia seguinte, se poderíamos precisar dele. No dia seguinte deixaríamos
Jaipur, íamos fazer, em carro alugado com motorista, os quase setecentos km que
nos separavam de Udaipur, a Veneza do Oriente.
“Amanhã vamos embora, mister Shyam,
vem aí um carro buscar-nos de manhã...”
“De qualquer modo vou estar por aqui
às nove horas, caso possam vir a precisar de mim...”
Na manhã seguinte, tínhamos acabado de
fechar as malas, o telefone do quarto tocou a avisar que o nosso transporte
para Udaipur chegara e estava estacionado no acesso do hotel. Descemos, pagámos
e metemos as malas no carro. Entrámos, o carro arrancou, cruzou os portões do
hotel e virou à direita em direcção ao acesso à autoestrada.
Ao sair dos portões vi Mister Shyam do
lado de lá da rua, de pé, encostado a um muro, à nossa espera como prometera.
Só tive tempo de levantar a mão, acenar numa vincada despedida, enquanto ele permanecia
ali, afastando-se na distância do vidro de trás do automóvel, o seu sorriso
hospitaleiro ascendendo sem fio na manhã perfeita.
© Fotografias de Pedro Serrano, Jaipur (Índia), 2013.
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