30 junho 2015

O CRIADO-MUDO

A última vez que estive a menos de um metro de Cavaco Silva foi há trinta e cinco anos, era ele Ministro das Finanças e eu um jovem médico, acabado de designar director do novíssimo centro de saúde de um dos concelhos mais atrasados do país.
A colisão deu-se no dia da inauguração e eu e o meu pessoal estávamos arrasados de, nos dias anteriores, termos andado a desempacotar os caixotes que juncavam os corredores do centro de saúde. Uma correria, pois quem mandava tinha decidido que o centro seria inaugurado mesmo sem movimento, sem consultas, sem doentes,  apenas com as paredes e o tal material, desencaixotado.
Mal me viram ao saltar das viaturas EP que precediam a comitiva ministerial e demonstrando grande perspicácia simbólica, os meus chefes regionais mandaram que vestisse uma bata, a demonstrar que havia ali uma autoridade médica, alguma organização. Neguei-me a tal, pois parecia-me absurdo uma solitária figura de branco a pairar entre figurões de fato completo num estabelecimento de saúde ainda fechado ao público. Amuaram muito.
Não contando com as figuras de proa da comitiva norueguesa, a maior parte das quais eu já conhecia, do lado português havia cinco ministros presentes, a abrilhantar numericamente o apreço que Portugal atribuía aos quase catorze milhões de euros que os noruegueses estavam a despejar no distrito de Vila Real, metade deles a fundo perdido! Que viessem muitos daqueles!
Como sempre acontece nestas coisas, num dos deambulares pelos corredores a mostrar a obra achei-me lado a lado com o ministro das Finanças, um ser que – ao vivo tal como na TV – me impressionava pelo ar empertigado, seco, rígido, o qual trazia à lembrança um criado-mudo, uma daquelas estruturas em madeira com ombros e sem cabeça onde se pendura, para que não perca a forma, a roupa ao fim do dia. Só que este criado-mudo tinha uma desvantagem: falava! E tendo-lhe sido apresentado, minutos atrás, como o futuro director daquela instituição, o homem desata a fustigar-me com o seu desagrado pela despesa nacional com o transporte em ambulância e a inquirir o que tencionava eu fazer para mitigar o assunto a nível local. Ora acontece que eu estava por ali há meia-dúzia de dias, com as mãos cheias de calos dos caixotes, que – até à data – tinham sido os únicos bens da área da saúde a ser transportados e, como brevemente me iria aperceber, sem autonomia sequer para mandar comprar uma lâmpada se as que tinham sido pagas pelos noruegueses fundissem. Tendo tudo isso em perspectiva, respondi à admoestação do senhor com ironia, o que o deixou ainda mais irritado do que no seu natural. Quem acabou por me salvar do aperto foi outra eminência presente, um homem dando pelo nome de Morais Leitão e Ministro dos Assuntos Sociais, um tipo simpático e de piada pronta que se apercebera da situação.
Duas horas depois tinham todos ido embora, deixando-me entregue aos bichos e às paredes vazias. O Centro de Saúde abriria quinze dias depois, mas aí já só os noruegueses – regressados às suas temperaturas abaixo de zero, mas sempre atentos – se congratularam com o feito e com os progressos posteriores.
Pois esta cascata de lembranças desencadeou-se a propósito do pouco que mudou Cavaco Silva nestes trinta e cinco anos e também do pouco que evoluiu o meu apreço pelo personagem que faz agora o criado-mudo em Belém. E o homem conserva o seu acrescento antigo: fala! E fala agora em nome do país, não só em nome das ambulâncias, para mal dos nossos pecados. Já esta semana, a propósito da possível saída da Grécia da Comunidade Europeia, achatou o problema à evidência de que ficaremos 18 em vez de 19, com a oculta satisfação – a bailar-lhe nos olhos e na entoação – de até poder vir a sobrar mais qualquer coisita para nós num grupo em que, perante o mesmo bolo, os clientes vão ser em menor número... Toda esta sabedoria de lápis atrás da orelha, vertida naquela superioridade nauseada de quem está absolutamente seguro do que diz.  
O homem acha mesmo que não precisa de aprender mais nada e, se tudo vier a correr mal para nós, como é possível, não se perturbará e virá comunicar ao país a imprevisibilidade dos mercados e do contexto internacional...
Até lá, bem que poderia, antes de abrir a boca e envergonhar-nos a todos,  ilustrar-se um pouco sobre esse contexto de que fala. Bastava ler-lhe um livro ou dois sobre a história da Europa e dos países que orlam o Mediterrâneo, pois a coisa repete-se. Se demasiado maçado, não precisava sequer ir tão longe, era só pedir a um dos assessores que lhe requisitasse um desses livros sobre a II Guerra Mundial que abundam agora pelas livrarias. Numas centenas de páginas em português ficaria a perceber como – nuns dias em que já por aí andava, de calções, a esgravatar a terra no meio das alfarrobeiras – alguns dos políticos que mereceram esse nome se preocupavam com um pequeno e periférico país chamado Grécia e com o papel-chave que ocupa no equilíbrio do Mundo.
Mas há certas pessoas de quem não se deve esperar esforço para além de um “aqui não há fiado” ou de um “aqui não há feriado”.


    

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