28 de Setembro, Istambul
Manhã gelada
e nós na bicha para levantar os vistos desde as sete e meia. Por causa dos
feriados a fila duplicou e só fomos atendidos duas horas depois. Novo suspense:
o meu visto está pronto, mas não o do Rui. O passaporte dele caduca daqui a
três semanas, pelo que nada feito: o passaporte deveria ser válido pelo menos
por mais seis meses para se poder candidatar a uma autorização de entrada no
Irão.
Descobrimos
que em Istambul não há embaixada de Portugal, apenas um consulado do lado de lá
do Bósforo. Temos pressa, apanhámos um autocarro, talvez nos concedam o visto
ainda hoje se formos levar o passaporte à embaixada do Irão da parte da manhã.
O consulado
funciona num prédio de habitação sem nada que o distinga a não ser um cartão ao
lado do botão da campainha e uma bandeira portuguesa, murcha e esfiapada, lá em
cima, especada numa varanda descascada. A casa é silenciosa e triste; na sala
onde somos recebidos existe uma máquina de costura e baratas erram,
desorientadas, pelo chão de madeira. O cônsul, um senhor velhinho, enquanto
folheava o passaporte foi perguntando ao Rui se tinha com ele o bilhete de
identidade, documento indispensável, segundo a lei portuguesa, para a
revalidação.
– Lamento, mas não tenho – respondeu o
meu amigo
–
E tem
consigo uma licença militar, válida? Também é um documento obrigatório...
–
Confesso que
também não a tenho actualmente na minha posse – retorquiu o Rui naquele tom extremamente
educado que emprega para falar com as mães e as avós das gajas em que anda
interessado.
– Eu calculei – suspirou o cônsul –
quem é que vai andar com tudo isso num sítio destes!
E apenas
testemunhado pelas nossas duvidosas figuras, depois de lhe contarmos um pouco
quem éramos, de onde vínhamos e onde íamos, revalidou o passaporte por mais
cinco anos.
Quanto a
ele, é médico como nós e reside na Turquia há quarenta anos. Está completamente
falido, não tem sequer dinheiro para regressar à ditosa pátria que, agora que
ele completa setenta anos, o vai pôr ditosamente na rua, sem reforma ou pensão.
Enquanto nos despedíamos e ele nos convidava para o voltarmos a visitar quando
regressarmos da Índia, a mulher, uma senhora francesa de pernas inchadas,
passou em direcção à porta que dá para a varanda: será meio-dia em breve e ela
vai apear a bandeira. O cônsul ainda a chamou para nos apresentar, mas a dama é
surda e não ouviu o chamamento. O marido encolheu os ombros num sorriso.
Voltámos à
embaixada do Irão em silêncio, interiormente comovidos com o que acabáramos de
ver, com a sensação que quase valera a pena o passaporte caducado para termos
passado por aqueles momentos no velho andar do consulado. Mas, na embaixada do
Irão, os altivos persas não nos dão o visto para hoje:
–
Come tomorrow. Tomorrow you will get visa!
Cassius Clay vs Ken Norton, Setembro 1976. |
Jantámos no Lâle, o Rui foi deitar-se cedo. Está um
tanto derreado com a incoercível coceira provocada por umas pápulas que lhe
apareceram nas costas. Eu saí com o
Douglas Greenberg, um dos tipos que viajou connosco de Atenas e está aqui no
hotel. Fomos até um café das redondezas para ver um combate de boxe na TV. Não
que o pugilismo algum dia me tenha interessado, mas o Doug, que é californiano,
está entusiasmado. Os turcos, esses, transbordam o café e estão ao rubro:
disputa-se um mundial de pesos-pesados e o favorito é Cassius Clay, um herói
por estas bandas pois é um americano que, para além da recusa em combater no
Vietnam e lhe ter sido retirado o título por causa disso, se converteu ao
islamismo, dando agora pelo nome de Muhammad Ali. Isto é uma coisa que põe os
americanos loucos, um preto que se converte a uma religião de terroristas e
que, ainda por cima, se recusa a cumprir o status
quo. Dá vontade de o desancar, mas a porra toda é que o homem é
mundialmente famoso a usar os punhos! Ao décimo quinto round lá se foi Ken Norton ao charco por toda uma eternidade e o
café rejubilou em uníssono com o Doug, aos saltos e aos abraços aos infiéis
turcos.
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