Estava, porém, escrito nas estrelas que voltaríamos
a ver o velho cônsul e que, de novo, nos
auxiliaria com o seu sorriso de quem acarinha aflitos como quem rega plantas.
No Güngör resolvemos mudar das
camaratas para um quarto só para nós, um belo quartito assotado com duas camas,
no quarto-andar. Estamos saturados de dormir, para manter o bolso secreto sob
vigilância, com os jeans enfiados e com um olho fechado e outro aberto, pois os
colegas de quarto, mesmo os de olhar mais para além do arco-íris, não inspiram
confiança. Um viajante, curtido por várias passagens pelo Caminho hippie [1],
avisou-nos que o mais perigoso no Oriente é o Ocidente! O caminho pulula de
gente sem escrúpulos, uns por estarem agarrados a drogas duras e dependentes do
respectivo negócio, outros fugidos dos seus países por delitos comuns e
complicações com a polícia. Todo esse tipo de gente anseia por dinheiro fresco
e a alguns dava imenso jeito mudar de identidade usando um passaporte
reconvertido. A outra razão para decidirmos mudar foi porque atribuímos aos
beliches, a toda aquela promiscuidade de espaços pouco arejados e encardidos o
mal cutâneo que nos atacou aos dois, primeiro ao Rui e depois a mim. Nas últimas
manhãs acordámos com o corpo, a única excepção é a cara, coberto de pápulas
cor-de-rosa-inflamado e provocando um prurido tão tremendo que nos apetece
raspar a pele a canivete. Crentes nos benefícios da água tomámos abundantes
liras de banhos, ensaboámo-nos insistentemente, mas o alívio só durou enquanto
estivemos sob o jacto frouxo do chuveiro. O mal não parece picada de mosquito,
são demasiados focos, muitos deles em zonas cobertas durante a noite; nem de
pulga, que deixa um halo mais escuro. Como as zonas mais carnudas das mãos
também foram atacadas ainda pensámos em sarna, mas não há sinal dos clássicos
túneis entre a pele dos dedos que os diligentes parasitas da sarna escavam. Uma
das hipóteses que pusemos foi a de intoxicação alimentar, mas o cônsul abanou a
cabeça aos colegas mais novos numa negativa pensativa: para ele, aquilo estava
a ser provocado por forte reacção de tipo histamínico a animal hematófago e o
melhor seria comprarmos uma solução anti-histamínica calmante, do tipo do
Caladryl.
Mas as nossas chagas foram assunto minoritário na
nova ida ao decrépito consulado. Tal como combinado ontem, voltámos confiantes
à Embaixada do Irão para levantar o visto do Rui. Nada feito: o passaporte dele
diz ser válido para “todos os países da Europa” e nós vamos, abundantemente,
sair da Europa. Mudada a redacção para “todos os países com os quais Portugal
mantém relações diplomáticas” corremos à embaixada do Irão onde o funcionário,
já sorridente de tanto nos atender, nos entregou o almejado visto.
Depois de nos besuntarmos abundantemente com a
emulsão (o Rui está em bastante pior estado do que eu), passámos pela agência
de viagens à cata de novidades do nosso transporte Istambul-Teerão. Quem tinha
razão em desconfiar era o Des que, a esta hora, já vai por aí largado em
direcção a Leste! O gerente da agência diz-nos que partiu uma camionete hoje de
manhã e, como nós não aparecemos nem avisámos, perdemos não só o transporte
como também a entrada que tínhamos adiantado... No entanto, o tipo tem uma
solução maravilhosa para nos oferecer e que apaga todas as possíveis ofensas:
há um amigo dele com um Mercedes para levar para Teerão e (a viagem é de mais
de 2.000 km) precisa de quem lhe leve o carro por essa Ásia fora. Ora, se nós
lhe levássemos o carro teríamos transporte de graça, partiríamos quando
entendêssemos e o amigo dele ainda nos pagaria 100 dólares a cada um pelo
incómodo. E pelos entredentes daquelas facilidades fomos percebendo que o
esquema que nos pareceria lógico – nós dois e mais o dono do Mercedes
revezando-nos na condução ao longo de três dias sem parar – nos bafejava com
mau hálito:
–
Não, man,
não estás a perceber: o meu amigo não vai, o carro fica à vossa
responsabilidade e em Teerão está alguém à vossa espera para o recuperar...
Não alinhámos no contrato, pois já ouvíramos falar
do fervor inquisitivo das fronteiras iranianas e de como Turquia e Irão lidam
com traficantes seja do que for. Com a recusa, mas sem hard feelings, lá se foi o nosso sinal para o bilhete pelo cano!
Antes isso do que correr o risco de viajar luxuosamente com um pneu
sobresselente recheado de pó branco ou amarelado.
Agora são cinco e pouco da tarde e, pelos
altifalantes das mesquitas, os muezins
cantam o Senhor e convidam os crentes a orar. Aplacámos a desilusão no nosso
café onde, desta vez, estamos na companhia de Larry, um outro americano que
conhecemos no Güngör
por intermédio do Des. Embora natural e residente em Nova York, o tipo tem
ascendência turca e anda a viajar pela Europa há treze meses.
Encontrámo-lo no final da viagem e daqui regressa a casa. Foi um gajo com quem não simpatizámos no princípio e a primeira conclusão que tirámos sobre ele foi que deveria ser bicha, impressão esboçada com os crayons da voz afectada, dos gestos aéreos, do cabelo penteadinho, da echarpe de seda entalada no colarinho e os retoques de outros sinais minor de deslumbramento urbano. Mas estamos os três sentados a uma mesa de mármore antigo, coberta de papéis, cadernos, o I Ching, um canivete suíço, um cachimbo, cinzeiro; os clássicos copos de vidro do chá de menta. E a conversa corre como um rio de planície: serena, quente, diluindo-se na tarde que escurece lá fora. Contamos-lhe coisas da nossa vida, de quem somos e de para onde não sabemos que iremos para além desta viagem agora começada. E ele, numa voz quase ciciada, de quem olha para dentro, fala das manhãs que passou em Hollywood tomando chá com uma velha tia, e de dias de inverno em Nova York, ventosos, com vidros enormes a voar como papagaios sem fio e a estilhaçar-se na rua, directamente caídos de arranha-céus com quarenta andares. No caminho lento para o hotel ele garante-nos sucesso e deseja-nos serenidade, diz que pelo que vai conhecendo de nós chegaremos onde queremos.
Encontrámo-lo no final da viagem e daqui regressa a casa. Foi um gajo com quem não simpatizámos no princípio e a primeira conclusão que tirámos sobre ele foi que deveria ser bicha, impressão esboçada com os crayons da voz afectada, dos gestos aéreos, do cabelo penteadinho, da echarpe de seda entalada no colarinho e os retoques de outros sinais minor de deslumbramento urbano. Mas estamos os três sentados a uma mesa de mármore antigo, coberta de papéis, cadernos, o I Ching, um canivete suíço, um cachimbo, cinzeiro; os clássicos copos de vidro do chá de menta. E a conversa corre como um rio de planície: serena, quente, diluindo-se na tarde que escurece lá fora. Contamos-lhe coisas da nossa vida, de quem somos e de para onde não sabemos que iremos para além desta viagem agora começada. E ele, numa voz quase ciciada, de quem olha para dentro, fala das manhãs que passou em Hollywood tomando chá com uma velha tia, e de dias de inverno em Nova York, ventosos, com vidros enormes a voar como papagaios sem fio e a estilhaçar-se na rua, directamente caídos de arranha-céus com quarenta andares. No caminho lento para o hotel ele garante-nos sucesso e deseja-nos serenidade, diz que pelo que vai conhecendo de nós chegaremos onde queremos.
[1] Caminho hippie (Hippie trail)
– Rota que nos anos 60 e 70 seguiam os viajantes para Oriente. Partindo de
várias cidades europeias (Londres, Bruxelas, Amesterdão) iniciava-se em
Istambul e alcançava a Índia atravessando a Turquia, o Irão, o Afeganistão e o
Paquistão. Na Índia, subdividia-se em dois ramos mais frequentados: para norte
até ao Nepal ou para sul até Goa.
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