A minha mãe não estava em casa quando
cheguei. Ao perguntar, a minha avó disse que acabara de sair, tinha ido lavar
roupa. Informei-a de que iria ao seu encontro.
“Vai e volta com ela”, respondeu a
avó.
Encontrei-a no seu sítio preferido, os
quais não eram os degraus que nasciam em frente à porta do templo abandonado e
desapareciam na água (e onde tantas vizinhas preferiam enxaguar a roupa), mas
sim na pequena plataforma por baixo da figueira sagrada. Havia ali uma brecha
no muro, um único degrau e depois o rectângulo de pedra ao rés da água. A
figueira era já velha o suficiente para criar um manto de sombra sobre a água e,
como por súplica atendida, o tronco crescera um tanto inclinado sobre a
superfície do lago, o que adoçava a inclemência do sol do meio-dia.
Ainda antes de a ver – nessa altura o
muro caiado de amarelo que bordejava a água crescia-me até tapar o nível do
olhar – ouvi o barulho ritmado da espátula a bater a roupa ensaboada. Quando me
descobriu a espreitá-la pela brecha do muro, a minha mãe fingiu não me ver por
uns momentos e continuou a assestar a espátula na roupa amarfanhada. Mas eu
conseguia perceber no seu olhar, escondido sob as felpudas pestanas descidas, o
lampejo travesso de quem se preparava para saudar a minha chegada.
Nesse fim de manhã, ela vestia as calças
com a cor da água de beterraba e uma camisa açafrão que lhe descia até aos
joelhos, sobre a qual flutuava um véu azul-fumo, quase transparente, que se
lhe ia repuxando da cabeça pois uma das pontas boiava na água e ganhava
contrapeso.
Sem deixar de bater a roupa com a
espátula de madeira, rápida como um esquilo quando se assusta, a minha mãe meteu
os dedos no balde de latão e salpicou-os na minha direcção, pregando-me uma
surpresa molhada.
“Julgavas que não te via? Anda, que te
lavo a roupa e te dou banho para que não sujes o lago...”
Despi-me rápido como o trovão e, antes
que chegasse a minha hora, chapinhei na água verde enquanto a minha mãe estorcegava
os meus calções como se estivesse zangada com eles. Será que me ia esfregar a
cabeça com o mesmo furor? Tremi de antecipação.
“Agora já podes abrir os olhos...”,
disse a minha mãe após me despejar vários cantarilhos de água sobre o cabelo
empastado no sabão azul e branco que purificara os meus calções.
Durante a lavagem, para evitar o ardor
do sabão, mantivera a cabeça esticada para trás e quando descruzei as pálpebras
vi tremeluzir sobre mim, como fantasmas que deixava no meu regresso ao mundo, as
manchas de luz que, aprisionadas na folhagem da figueira, faiscavam do céu
branco.
Olhei para a minha mãe que, ainda acocorada
sobre a pedra ao rés da água, me estendia uma mão enevoada onde se pendurava
uma camisa encharcada.
“Veste-te, que vamos voltar...”,
disse, começando a empilhar a roupa lavada no alguidar.
Agora passaram sessenta anos, vivi
quase toda a minha vida de adulto no outro lado do mundo, levo dois dias de
avião mal dormidos para chegar aqui. Na borda do lago fizeram um hotel com os
restos da moradia de um nobre do local.
Do terraço, à distância de vinte
passos, está a figueira sagrada, a brecha no muro e o degrau que a minha mãe descia
para lavar a roupa. O templo abandonado mantém-se serenamente abandoado;
mulheres continuam a lavar a roupa, usam
agora sabonete líquido em embalagens individuais e os alguidares são de
plástico, as mesmas espátulas de madeira ecoam no ar. A cor do muro ao longo do
caminho desbotou, mas ainda se percebe uns restos de amarelo nas extensas
cicatrizes acinzentadas do estuque. Quanto à figueira, não consigo ter a
certeza se cresceu ou não nestes anos todos... É óbvio que as garças brancas
que se empoleiram nas ramagens da copa serão outras, que uma garça não dura
seis décadas. Mas a árvore... Parece-me exactamente a mesma de há sessenta
anos, mas talvez isso esteja somente preso à circunstância de, nesses dias, os
meus sentidos a fazerem maior por ainda não ter crescido até à dimensão em que,
apesar dos olhos bem cerrados, vejo agora tudo pela voz inaudível da memória.
© Fotografias de Pedro Serrano, Udaipur (Índia), Setembro 2013.
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