11 abril 2014

A VIDA DOS OUTROS

O que mais chamava a atenção era o espaço vazio cavado entre as duas extremidades da grande mesa em volta da qual se atarefava o grupo. Perto da porta da sala, agrupava-se um enxame zumbidor de sete ou oito  mulheres, enquanto na outra extremidade, uma ponta mais silenciosa – se assim se podia dizer – se sentavam apenas duas.
Entre os dois polos, camuflando ao menos prevenido aquele fosso e dando um ar de intensa actividade ao tampo envernizado da mesa, dispunham-se cortes de tecido, entretelas, carrinhos de linhas e novelos de lã; tesouras, e revistas com as folhas centrais desdobradas como se fossem mapas de alguma jornada militar.
Mas havia uma razão para aquela fronteira, garantia Dona Gertrudes à sua interlocutora:
“É que na realidade, Dona Rosi, a mim e à Dona Lucinda não nos interessa assim tanto a vida dos outros, não sei se me entende...”
Dona Rosi percebia perfeitamente, de facto, jurava do outro lado do fio, também era uma dessas:
“Olhe que o que sei dos outros é mais por que me vêm dizer do que por perguntar...”
“Foi por isso que, com naturalidade, nos acabámos por sentar naquele canto da mesa, perto do aquecedor, onde havia mais sossego e não nos sentíamos tão obrigadas a cortar na vida alheia...E passou a ser o nosso sítio habitual.”
Mas acontecera aquela perturbação na vida de Dona Lucinda, a quem um divertículo intestinal levara ao aparecimento de uma febre inexplicável e, após três semanas de angústia e incerteza, a um internamento hospitalar!
“Não me diga,” tartamudeou Dona Rosi, “estou para a minha vida! Internada!?”
“Vai para seis dias,” garantiu Dona Gertrudes, satisfeita com o tempo de exposição à ignorância da outra, “olhe que em dois dias levou cinco garrafas de soro – parece que estava muito desidratada, coitadinha; as cólicas...”.
“E eu sem saber de nada... Nem sei que me parece; espero que ela não fique a pensar que foi falta de cuidado da minha parte...”
“Ora, Dona Rosi, a Dona Lucinda conhece-a melhor do que isso – é uma senhora na verdadeira acepção da palavra...”
“Lá isso...”
“Foi por essa e por outras que acabámos por escolher sempre aquela ponta da mesa, a ficar um pouco arredadas daquele frenesi de bota abaixo, não sei se me entende. Mas ao fim de uma semana, logo que o estado da Dona Lucinda estabilizou e foi dada como fora de perigo, voltei aos Encantos d’ Avozinha e, ao entrar – já lá estavam as outras todas – não sei que me pareceu sentar-me lá ao fundo, sozinha, e como visse uma cadeira vaga no meio delas perguntei se estava vaga...”
“Que a gente saiba...”, respondeu logo uma, assim com uma ponta de gelo na voz, que eu até estive para nem me sentar, juro-lhe. Mas também não queria estar a passar por enjoada ou da laia delas, não sei se percebe...
“Ah, não deve ter sido nada fácil para si, Dona Gertrudes...”, solidarizou-se Dona Rosi enquanto mudava de canal na TV a quem tinha emudecido o som.
“Só Deus sabe... Pois sentei-me, tirei as agulhas e os carapins do saco e comecei a tricotar em silêncio. Pois julga que alguma delas me perguntou sequer pela Dona Lucinda, por que razão deixara de aparecer? Nada, um desprimor, aquilo, para mim, classificou-as de vez!”
“Ah, veja-me só! Que insensibilidade!”
“Para falar da vida dos outros, para cortar em toda a gente – olhe que não há uma só alma que seja perfeita para aquelas mulheres – estão para ali viradas, mas para perguntar por uma pessoa que convive com elas duas vezes por semana, que até podia estar morta...”
“Que gente...”
“Pois sentei-me, pus-me a trabalhar e não é que, de repente, entra pela porta a Dona Adosinda, aquela a quem eu estava a ocupar a cadeira e que, pelo tom das outras, fiquei a julgar que nesse dia não ia?!! Olhe que me ia dando uma coisa...”
“Veja só, e ninguém a avisar...”, disse Dona Rosi descolando com cuidado o selo do pacote de bolachas, de modo a não exportar ruído para a ligação telefónica.
“’Então está sentada no meu lugar?’,” disse ela mal bateu a porta. “Olhe que fiquei branca, até me embrulhei a murmurar: É que julguei que estava vaga..., também não quis estar a apontar o dedo às amigas dela, não sei se percebe...”
“E ela?”, perguntou Dona Rosi, interessada.
“Quando me viu a fazer tenção de me levantar disse que me deixasse estar, que ia ela lá para o fundo – assim como quem fala que é obrigada ao degredo! Olhe que nem sei que me apeteceu responder-lhe, mas não estive para me rebaixar ao nível delas – há gente sem instrução mais bem educada aí pelas aldeias. Então agarrei nas minhas coisas, levantei-me e fui-me sentar, muda como um sepulcro, no meu lugar!”
© Fotografia de Pedro Serrano, Barcelona 2012.



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