O escritório é uma das divisões a que me dirijo automaticamente sempre que entro nesta casa. Já nada há lá a fazer, de facto, e como é virado a Norte e tem uma única janela é sala algo sombria, facilmente dada a ficar impregnada pelos os cheiros que por lá se demoram. Nos seus tempos mais movimentados, um dos odores presentes e mais marcantes era o cheiro a medicamentos que se evaporava das divisões com portinhola do armário-estante que enchia uma das paredes, estante em que o meu pai arrumava livros de medicina, pintura e filosofia e amontoava as amostras da propaganda médica. Mais abaixo, numa posição já perto de cócoras, ao abrir as gavetas onde se guardavam as fotografias de família (eram todas guardadas ali, não sei porquê), o nariz era-nos picado pelo acidulado odor a película fotográfica que tinham as fotos antes da era digital, no tempo em que eram reveladas e fixadas com cantoneiras e legenda em álbuns ou arrumadas em envelopes em vez de ficarem para sempre perdidas na memória de um disco duro de computador.
Não é que o meu pai passasse muitas horas fechado no escritório e ‘fechado’ é mesmo palavra desadequada, pois quando lá estava mantinha a porta aberta, mas é a divisão da casa que era indubitavelmente o seu sítio, todo o resto eram locais mais partilhados.
“Deve estar no escritório do pai.”
E assim, não sei até que ponto o facto de ir lá parar amiúde sempre que aqui entro não se relaciona com a procura da sua presença, a procura da sua companhia. Meu Deus, os mortos regressam e tornam-se tão vivos e tão pertença dos lugares onde viveram... Não é no cemitério de Agramonte, ali ao lado da Casa da Música, que seja o que for que reste dele habita; é nesta casa.
Após a casa ser fechada, na primeira noite que lá dormi sozinho, acordei de um sonho forte com o coração a palpitar. Fiquei a reconstitui-lo no escuro (com o cuidado que se deve ter na reconstituição de sonhos, pois se os tentamos reter com força esfiapam-se), os cotovelos fincados no colchão da cama onde ele morrera menos de dois meses antes.
Não é que o meu pai passasse muitas horas fechado no escritório e ‘fechado’ é mesmo palavra desadequada, pois quando lá estava mantinha a porta aberta, mas é a divisão da casa que era indubitavelmente o seu sítio, todo o resto eram locais mais partilhados.
“Deve estar no escritório do pai.”
E assim, não sei até que ponto o facto de ir lá parar amiúde sempre que aqui entro não se relaciona com a procura da sua presença, a procura da sua companhia. Meu Deus, os mortos regressam e tornam-se tão vivos e tão pertença dos lugares onde viveram... Não é no cemitério de Agramonte, ali ao lado da Casa da Música, que seja o que for que reste dele habita; é nesta casa.
Após a casa ser fechada, na primeira noite que lá dormi sozinho, acordei de um sonho forte com o coração a palpitar. Fiquei a reconstitui-lo no escuro (com o cuidado que se deve ter na reconstituição de sonhos, pois se os tentamos reter com força esfiapam-se), os cotovelos fincados no colchão da cama onde ele morrera menos de dois meses antes.
No sonho, eu estava no escritório, de joelhos, a procurar papeis para os ordenar e arrumar nas gavetas da estante, uma tarefa que se tornou obsessão obrigatória para todos nós após a sua morte. De repente, a porta abriu-se e o meu pai espreitou para dentro, mostrando um semblante algo surpreendido por me ver ali a mexer nas coisas dele. Não disse palavra, retirou a cabeça e foi-se embora. Quanto a mim, consciente dentro do próprio sonho, não ignorava que ele já tinha morrido e que, por todas as leis da lógica, não era suposto aparecer ali, os mortos não aparecem aos vivos em presença física – é um pacto antigo! De qualquer modo, ao vê-lo espreitar não deixei de me sentir um intruso, a espiolhar, a interferir no seu espaço. Deitado na sua cama, reconstituindo o sonho, após a apreensão supersticiosa do primeiro embate, quase sorri com a clareza do recado antes de adormecer de novo para a manhã de Natal.
© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (2010).
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