Sob certo ponto de vista, o meu pai faz-me lembrar um daquele sucessos americanos que descobrimos nos filmes feitos por lá e que eles tanto gostam de celebrar. O emigrante, frágil e sozinho, mas com a determinação do encurralado que procura a luz, que chega a um país desconhecido. Passados uns anos sobre a manhã em que chegou a Ellis Island, vemo-lo instalado, como se sempre por ali tivesse andado: constituiu família, tem casa própria, adaptou-se ao local onde vive mas mantém e vai propagando em surdina os valores que trouxe da terra natal.
No caso dele, a sua América foi a cidade do Porto e o seu ponto de partida uma aldeia que ainda hoje surpreende pela pequenez e isolamento, perdida entre Vouzela e Viseu, um daqueles locais anónimos que vemos passar com um estremecimento de desdém e desgosto ao olhar pela janela do carro durante uma viagem interminável por estradas secundárias. Não há rede de telemóvel para nenhum dos operadores no casarão de granito que foi dos meus avós, que o meu pai reconstruiu e tornou habitável para os seres que conheceu e a quem deu origem no Porto, habitável o suficiente para todos adorarmos ir lá passar um mês de férias seguido em cada fim de Verão da infância, para que a memoria de todos nós ficasse para sempre ligada ao local. Os meus avós daquele lado eram agricultores abastados, o que estava longe de significar dinheiro no banco, apenas terras, muitas parcelas de lavoura e pinhal espalhadas por uma grande extensão geográfica, animais, pessoal contratado para as lides de casa e do campo. Posses, num contexto daqueles, significava vida árdua, não se distinguindo com excessiva nitidez da vida dos outros todos que por ali andavam a arrancar algo à terra, demasiado dobrados sobre si próprios para sonhar que outra paisagem pudesse existir para além do recorte do Caramulo.
“A nossa família vem lá de cima, de Ventosa”, apontava ele o azulado da serra com um brilho de satisfação nos olhos, “gente esperta...”.
Mas dez filhos vivos, encavalitados uns nos outros sem intervalo, tornavam ainda mais remota qualquer hipótese de os meus avós paternos virem a alcançar liquidez. A minha avó morreu cedo, o meu pai andava na escola primária e o meu avô não tornou a casar; teve de despachar os filhos, pois que faz um viúvo com sete filhas sem idade sequer para casar? Dois dos rapazes foram despachados para o seminário, o terceiro emigrou logo que pôde para as américas, onde andou perdido longas décadas antes da família o conseguir voltar a encontrar. Já grande, descobri divertido que tinha uma tia mulata e que o meu tio do Brasil era dado aos orixás! Depois, as raparigas casaram entre a aldeia natal e Viseu, uma delas, para honrar a tradição, ficou solteira e áspera. O encontro com ela causava-me alguma ansiedade quando era pequeno, o olhar zombeteiro e implacável e o seu beijo, que incluía a esfregadela de um buço rijo, tolhia-me em cada Setembro de férias na aldeia, em cada passagem de ano em que visitávamos aquelas costelas da família.
Dos dois seminaristas, apenas um chegou a professar, o meu tio Vasco, meu padrinho, que chegou a cónego e me prometeu deixar a Casa da Mó e todos os seus outros bens se lhe seguisse as pegadas. “Nem morto”, imaginava já eu nessa altura, horrorizado que lhe passasse sequer pela cabeça tal ideia sobre mim. Quem, também, a dado ponto começou a suar frio com a perspectiva de usar marcas de distinção como um colarinho duro e semelhante a uma coleira, uma tosquiadela infligida no cocuruto, foi o meu pai. Mas mais do que essas praxes, contou-me ao pé da lareira da nossa sala de estar no Porto, foi um dia, aliás poucos dias antes de poder optar por qualquer outra coisa na vida, foi, dizia, a perspectiva de os seus pensamentos passarem a ser controlados, isto é, de a sua opinião nunca poder ser livre e ter de seguir determinada cartilha. E aos 19 anos, in extremis e já com a formação do seminário de Viseu completa, mandou tudo às urtigas.
Deve ter sido momento duro, carregado de angústia, essa decisão solitária e o que ela significava em termo de ter de procurar outro rumo na vida. Sem mãe, com um pai distante e a gerir uma manada de dez filhos, um irmão já estabelecido na profissão, toda a despesa ficou a cargo dele.
No seu modo de ser silencioso, o meu pai nunca explicitou demasiado as emoções associadas a esses instantes, mas é interessante que tenha guardado a memória dos momentos em que tomou a decisão e, instante não menos terrível, imagino, a comunicação da decisão ao meu avô. Não teve, sequer, uma mãe que pudesse interceder por ele, atrás da qual se pudesse resguardar um pouco da inclemência ou desabafar na noite desse dia.
© Fotografia: Passagem de ano em Oliveira de Barreiros, início dos anos 60 (fotógrafo desconhecido).
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