Falávamos do Natal, a chamada foi abaixo e acabei por não lhe contar:
No ano passado fui para cima a 22 de Dezembro, fiquei no meu hotel da avenida da Boavista. Embora seja do Porto, embora quase toda a minha família more por lá, deixei de aí ter casa desde a morte do meu pai, um Novembro há três anos... Releio com apreensão a frase que acabei de escrever, pois, sendo verdadeira, não é exacta. De facto já não tenho casa minha no Porto desde 1977, ano em que deixei a casa dos meus pais para ir trabalhar e residir em casa própria, uma moradia assombrada na rua das Trinas, em Guimarães. Por outro lado, continuo a ter casas no Porto onde ficar, meu Deus, a boa vontade e o afecto das minhas irmãs, tios, primos, cruxificar-me-iam se insinuasse que poderia ter de dormir ao relento. Mas, salvaguardadas estas nuances, a casa dos meus pais, embora o edifício lá continue, desapareceu e com ela o meu poiso natural nas idas ao Porto. Agora, o lugar das minhas prendas de Natal é a mala do meu carro.
Na noite de 23 fui a Braga, ter com o meu primo Manel e a minha prima Gabriela, mulher dele. O Manel cresceu comigo desde que me lembro, de modo que funciona mais como irmão do que propriamente como primo e até mais do que talvez um irmão, pois a confortável distância que permite uma relação primal possibilitou que misturássemos a partilha familiar com a cumplicidade de melhores amigos. Por tudo isto, aquele núcleo integra o conjunto de prendas que, todos os anos, acumulo em sacos de plástico como presentes de primeira instância. E ao fim da tarde de 23, sob chuva torrencial e noite cerrada, arranquei para Braga, para fazermos a nossa parcial e primeira ceia de Natal, pois voltámos depois a encontrar-nos em jantar natalício mais alargado no dia 24 de Dezembro.
“Compraste mais enfeites?” perguntei à minha prima, uma vez que a árvore é sempre a mesma.
“Não”, explicou, “foi o António que fez a decoração e como achou que só se vê este lado da árvore...”
O António tem sete ou oito anos, é obcecado pelo pormenor e pela sua aplicação rigorosa, e como a árvore é sempre montada encostada a uma das portas-janelas que dá para o quintal, achou que não valia a pena perder tempo com a metade do todo que não é acessível aos olhos da gente da casa. Para além do mais, o Natal é sempre à noite e de noite as persianas estão fechadas, não deve andar ninguém pelas ruas numa noite de Natal! E quem andar, vendedoras de fósforos e outras almas que batem leve, levemente, deve ser rapidamente arrancada ao exterior e milagrizada. Sendo tal, o António tem razão, não nos devemos preocupar com o exterior e basta a árvore estar enfeitada de um só lado.
Depois, nessa noite, fomos jantar, ao Maia, no cimo do monte do Sameiro. A estrada serpenteia por ali acima, por entre árvores e curvas apertadas, numa certa sensação de perigo e de ambiente de floresta negra de conto infantil. É com alívio e surpresa que se chega ao cimo, se encontra à nossa espera um local acolhedor, de lareira acesa e apainelados de madeira e onde se come divinamente. Imperturbáveis aos olhares alheios, as nossas almas esfregam as mãos quando, passado o corta-vento da porta, deparamos com o branco imaculado das toalhas de mesa e vemos avançar na nossa direcção o largo sorriso de laço preto e de boas-vindas do sr. Matos, o nosso duende de estimação, o nosso ente protector.
No Maia, para além de se comer divinamente, não se paga! Quer dizer, nós não pagamos, que os outros pagam e aquilo não é barato. Mas acontece que o meu primo Manel é médico da D. Mariazinha, a dona daquilo tudo, e ela não permite, nem sequer quer que a ideia lhe seja apresentada, que o seu clínico preferido pague. E nessas investidas ao Maia somos sempre cinco: o Manel e a Gabriela, os sorridentes filhos do casal (Terezinha e Manelzinho) e, claro, a entidade gentil que lhe narra esta história.
Faz parte da tradição que, ao decidir o sítio onde vamos jantar e antes de arrancarmos, a Gabriela exteriorize os seus remorsos e o indecente que é irmos, mais uma vez, abusar da D. Mariazinha.
“É muito chato, já se sabe que ela não nos vai deixar pagar; não sei o que me parece...”
Mas a todos nós acaba por nos parecer que é ali que nos sentimos mesmo bem naquela ceia de Natal e a ideia dos croquetes de vitela que podem estar no cimo do monte e da invernia à nossa espera acaba por nos empurrar porta fora, já a salivar de antecipação. E a minha prima, apesar dos remorsos que lhe ficam tão bem, acaba a atacar os croquetes com paixão.
Olhe que só no ano passado tomei consciência plena de que o jantar no Maia se tinha tornado tradição natalícia. A tradição vai acontecendo sem a gente se dar conta e que riqueza a gente ter oportunidade de se dar conta, porque, às vezes, só damos conta disso ao constatar a perda! Não acha?
Cá em baixo, no regresso, a lareira ainda continuava a ronronar, foi só dar-lhe uma cavaca nova para que ela a lambesse em cor de laranja.
“E se abríssemos as prendas?”, perguntou a Terezinha, morta por poder extasiar-se com os presentes a que, com aplicação, tinha descolado a fita-cola durante a tarde para uma primeira espreitadela.
“A tua casa está muito bonita”, dei por mim a dizer à minha prima quando lhe dei o beijo de despedida, antes de me meter no carro e na noite gelada de regresso ao Porto.
© Fotos: Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Braga, 2009; (2) Braga, 2010; (3) Braga, 2009.
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