“Manuela, está um caldo!”
O meu pai, um rigoroso adepto da
prevenção do choque térmico, fazia a sua abordagem ao mar de forma gradual.
Progredia, calmamente, até a água lhe
dar pelo meio da coxa e aí se quedava por uns minutos, a mão direita em concha
vertendo, como num auto-baptismo, progressivas colheradas de mar sobre os
ombros que depois, tal como se estivesse a espalhar um creme bronzeador,
distribuía pela pele dos braços, do peito, pelas zonas descobertas da careca.
Finalmente, quando se sentia
termicamente apto, rodava sobre si mesmo de forma a encarar o areal e
comunicava:
“Manuela, vem, a água está um
caldo...”
Sentada sobre uma toalha, à sombra de
um toldo, as mãos abraçando os joelhos flectidos, a minha mãe, algo envergonhada
pelo entusiasmo sonoro do marido, erguia discretamente um indicador que abanava
em negativa. Ela mantinha uma relação complicada com as águas de veraneio e,
mesmo no tépido mar do Algarve, seria uma vitória conseguir convencê-la a
aventurar-se, para além da cintura, às águas mais do que duas vezes por época
balnear. E quando, pressionada pelos lamentos de toda a família, acedia a
fazê-lo era vê-la mirando a benevolente piscina como se enfrentasse o cabo das
Tormentas, olhando alarmada para o nível das águas que lhe davam pelo tornozelo
como se a qualquer momento elas pudessem ganhar as profundezas da fossa do
Mindanau, enquanto trinta metros mais à frente, com água pelo umbigo, o meu pai
lhe assegurava:
“Há pé, há pé!”
Mas ela, malgrado os incentivos, a teia
de conhecidos que flutuava na sua órbita, progredia num paralisado receio, os
ombros tensos e os braços esticados ao longo do corpo, as palmas das mãos
viradas para baixo como se pretendesse suster a suave ondulação, evitar os
salpicos provocados pelas marradinhas da água contra a rebentação dos seus
joelhos.
Agora, no meio do verde cintilante das
águas, o meu pai desistiu e, com um mergulho satisfeito, entrega-se às águas,
solitário. Deitado na areia, a uns metros da mala térmica que marca a fronteira
da nossa zona no areal, penso se hei-de levantar-me e ir-lhe fazer companhia
quando chega até mim o ruído surdo da ponta de metal de um guarda-sol ao ser
espetado na areia e reparo nuns pés que, ao nível dos meus olhos, sacodem umas
chinelas de praia. A família que chegou vem ainda vestida e uma rapariga desfralda
à frente de uma outra uma toalha para que ela possa transmutar-se, resguardada,
num biquíni. Rapidamente rolo sobre mim próprio, encaixo os quadris na areia
quente, apoio o queixo sobre os braços cruzados e, camuflado atrás de uns olhos
falsamente semicerrados, ajusto as miras telescópicas das minhas pupilas, esquecendo
o pai na água, os leves remorsos por o deixar a sós com o oceano dissolvendo-se
no ar da manhã, arrastados para longe enlaçados ao pregão do homem que se afasta
anunciando batatas fritas.
Fotografia: Praia de Faro, 1969, fotógrafo desconhecido.
Sem comentários:
Enviar um comentário