Durante o último ano, o meu filho
esteve a estudar no nordeste da Alemanha, numa cidade encantadora onde,
no Inverno, as temperaturas atingem os vinte graus negativos e respirar se
torna doloroso como um ataque de tosse.
Assim, pode imaginar-se o gosto com
que, chegados os fins de Julho, desceu por aí abaixo para vir rever amigos e
família, a comida, o sol e o azul português, a Praia onde sempre morou e que
este ano, graças às agruras do país, esteve repleta de animação e abençoada por
dias sem vento e por neblinas transitórias.
Durante o mês que esteve por casa,
antes de regressar por dois anos à Alemanha, decidiu fazer uma revisão profunda
às coisas que guardava no quarto e no quase-apartamento por cima da garagem,
posses que se foram acumulando nas últimas duas décadas e fazem o desespero da
Carlota, a empregada que vela pelo pó e arrumações da família praticamente
desde que ele nasceu.
“Um dia deito tudo isto ao lixo!”,
dizia-me ela sazonalmente, à beira de um ataque de nervos, enquanto eu lhe pedia
paciência, pois havia de chegar um dia em que ele, já grande, rearranjaria o
seu mundo numa outra hierarquia.
Este Verão, dos bens que pôs de parte,
por já não lhe interessar ou por a sua utilidade se ter tornado distante, alguns
deu, outros vendeu na feira de velharias, outros (poucos) tiveram como destino
os diversos contentores do lixo. E todos os dias me aparecia com um qualquer
objecto, perguntando:
“Pai, queres isto para alguma coisa?”
Numa das últimas tardes em que aqui
esteve, já eu antecipava o silêncio que em breve se ia instalar na casa, surgiu
com uma pilha de livros, explicou:
“Olha, são livros de quando eu era
pequeno... Alguns gostava de guardar, outros podem-se dar ou ficar por aí, pode
ser que alguém os queira ler um dia...”
“Claro, guardam-se no cimo da estante
do quartinho do meio, já lá estão os meus, de quando era pequeno, alguns até os
leste também...”
Depois foi-se, exactamente na primeira
manhã de chuva deste Outono, eu, desambientado como um patego, do lado de cá
dos vidros da gate do aeroporto de Pedras Rubras, guarda-chuva enrolado nas
mãos, vendo-o dissolver-se no meio da multidão.
Cá em baixo, no sul onde moro, a tal resma
de livros antigos continuava empilhada em cima do piano. Um fim de tarde, ao ir
fechar as portadas do quarto dele, pus-me a inspecioná-la, cada capa que
desfilava sob os meus olhos trazendo à memória o momento em que aquele livro
fora comprado, ou quem o oferecera, a fase da vida dele em que fora manuseado...
Iluminei-me num sorriso ao topar, agrupados
no meio da pilha, com quatro livros das aventuras do Bolinha, livros que eram
uma preferência dele entre os três e os quatro anos de idade. O Bolinha é um
cachorrinho cor de areia-tisnada-pelo-sol, distinguido com umas manchas
castanhas arredondadas no lombo e no rabo, espetado e curioso. Os desenhos são
nítidos e de cores felizes, o diálogo é mínimo – como se quer num livro para
crianças que estão ainda longe das letras – o herói move-se num mundo seguro,
em que os pequenos sustos e surpresas são amparados pela presença do pai e da
mãe Bolinha.

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