20 outubro 2012

03:10


Tinha bebido em demasia ao jantar – vinho branco – não sabia bem o que a acordara, se a boca seca ou a bexiga pesada. Sentada na borda da cama, enfiou as pantufas e, logo que se viu no espelho em frente, desviou o olhar para o despertador na mesinha de cabeceira: 03:10, os dois pontos que separavam as horas dos minutos piscavam como um batimento cardíaco.
Sentada na sanita, suportou a cabeça entre as mãos escoradas pelos cotovelos nos joelhos. Depois estendeu o braço esquerdo e acendeu a torneira do bidé: a água jorrou no silêncio com um ruído consolador. Pensava em transferir o peso das ancas para a porcelana branca quando a gata surgiu na porta da casa de banho e avançou rapidamente. Preferia, acima de tudo, beber água corrente e, apesar de lha mudar todos os dias, sempre que podia deixava intacta a tigela de água na cozinha.
Precisa, a gata empoleirou-se no bidé, as patas de trás apoiadas na borda, as dianteiras dentro da bacia, recolhidas de modo a evitar a orla da toalha de água que atapetava o fundo e se ia sumindo pelo ralo. Ficou a escutar o som que o bicho produzia ao lamber o líquido, a reparar na oscilação satisfeita da ponta da cauda. Quando deu a tarefa por terminada, a gata saltou para o chão e ficou a olhar para ela, um olhar fixo de uma inexpressividade quase intimidante. Ficaram naquele braço de ferro uns momentos, até que desistiu de pensar em usar o bidé e optou pela solução medrosa do papel higiénico. Ao ouvir o tumulto do autoclismo, a gata como que saiu do seu transe e encaminhou-se para a porta, onde parou e olhou para trás. De passagem, adivinhou o que a outra pretendia, vestiu o roupão e seguiu-a pelo corredor. Abriu a porta, a gata passou aos seus pés num trote leve e empoleirou-se no varandim da entrada onde se ficou a estudar a névoa alaranjada que orvalhava o quintal.

© Fotografia de Pedro Serrano, 2011.

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