Tinha bebido em demasia ao jantar –
vinho branco – não sabia bem o que a acordara, se a boca seca ou a bexiga pesada. Sentada
na borda da cama, enfiou as pantufas e, logo que se viu no espelho em frente,
desviou o olhar para o despertador na mesinha de cabeceira: 03:10, os dois
pontos que separavam as horas dos minutos piscavam como um batimento cardíaco.
Sentada na sanita, suportou a cabeça
entre as mãos escoradas pelos cotovelos nos joelhos. Depois estendeu o braço
esquerdo e acendeu a torneira do bidé: a água jorrou no silêncio com um ruído
consolador. Pensava em transferir o peso das ancas para a porcelana branca
quando a gata surgiu na porta da casa de banho e avançou rapidamente. Preferia,
acima de tudo, beber água corrente e, apesar de lha mudar todos os dias, sempre
que podia deixava intacta a tigela de água na cozinha.
Precisa, a gata empoleirou-se no bidé,
as patas de trás apoiadas na borda, as dianteiras dentro da bacia, recolhidas
de modo a evitar a orla da toalha de água que atapetava o fundo e se ia sumindo
pelo ralo. Ficou a escutar o som que o bicho produzia ao lamber o líquido, a reparar
na oscilação satisfeita da ponta da cauda. Quando deu a tarefa por terminada, a
gata saltou para o chão e ficou a olhar para ela, um olhar fixo de uma
inexpressividade quase intimidante. Ficaram naquele braço de ferro uns
momentos, até que desistiu de pensar em usar o bidé e optou pela solução medrosa
do papel higiénico. Ao ouvir o tumulto do autoclismo, a gata como que saiu do
seu transe e encaminhou-se para a porta, onde parou e olhou para trás. De
passagem, adivinhou o que a outra pretendia, vestiu o roupão e seguiu-a pelo
corredor. Abriu a porta, a gata passou aos seus pés num trote leve e empoleirou-se no varandim
da entrada onde se ficou a estudar a névoa alaranjada que orvalhava o quintal.
© Fotografia de Pedro Serrano, 2011.
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