Depois que deixei a casa dos dos meus
pais para morar longe, costumava receber, por Dezembro, um telefonema do meu
pai a informar:
“Passou aqui o teu amigo Fernando
a deixar uma encomenda para ti.”
Quando chegava ao Porto, lá
estava, na cave, equilibrado a um canto da despensa, um grande embrulho, atado
por corda e com formato de espantalho, e um jerrycan, de cinco ou dez litros,
onde, através da opacidade do plástico, se conseguia adivinhar um líquido
grosso, lento ao movimento, esverdeado.
Era a lembrança de Natal do
Fernando, consistia num bacalhau (inteiro e teso no seu leito de sal como uma
ministra das finanças) e num garrafão de azeite. Tudo quanto era preciso para assegurar
uma boa consoada para além das intenções. As batatas, as couves, eu que as arranjasse
que um amigo não pode fazer tudo!
Sempre um pouco surpreso – quem
mais fazia uma coisa daquelas numa época daquelas? – telefonava a agradecer o
presente, a dizer “Fernando, és maluco, para que estiveste...”. E, do lado de
lá do fio, ele quase se desculpava, embaraçado pela generosidade que eu punha a
nu naquele momento.
O meu pai morreu, a casa foi
fechada e por mais uns pares de anos era uma das minhas irmãs que, já pesava
Dezembro, telefonava a comunicar “passou aqui aquele teu amigo, a deixar uma
encomenda. Onde queres que a ponha? O embrulho cheira um bocado…”
“Eu sei, é bacalhau...”,
respondia, pois ele telefonara-me previamente, a saber onde havia de entregar o
presente nesse ano. “Arruma aí onde puderes, que eu passo a buscar mal possa...”
Este ano, não recebi o usual
telefonema a desejar bom Natal do Fernando. Apesar do grande esforço, das
campanhas a oferecer telemóveis desbloqueados e pacotes de chamadas grátis, as
companhias telefónicas ainda não conseguiram que os cemitérios aderissem ao seu
esforço para por todos os portugueses em contacto na quadra natalícia. Fiquei
às escuras, e não me restou alternativa à de pegar no telefone e ligar a saber
como ia tudo lá por cima, junto da família que ele deixou em Setembro, quando
decidiu mudar-se para paragens onde o bacalhau é sempre espiritual.
© Fotografia de Pedro Serrano, Aveiro, Novembro 2015.
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